Imigrantes

Elas costuram o futuro longe de país em guerra

Estrangeiras lançam marca de roupas e descobrem novas habilidades no Brasil

Seg, 24/10/16 - 02h00

Falar de si e do passado na República Democrática do Congo, na África, não é fácil. “Não gosto de lembrar, ainda não superei para contar”, diz Princess Kambilo, 27, que se comunica bem em português e melhor ainda com o olhar. Ela e Benediction Kipuni, 21, são reservadas por natureza. Ainda trazem no semblante a dor de quem viveu a guerra e a preocupação com os familiares que ficaram. Mas se abrem em sorrisos e esperança ao mostrar as peças da marca de roupas Benkip Fashion Designer, que lançaram neste ano em Belo Horizonte, onde vivem como imigrantes.

O colorido dos tecidos trazidos da África se junta com peças e estilos locais, que em nada lembram os conflitos que atingem o Congo há décadas e provocam até hoje mortes em massa. Porém, inevitavelmente, a conversa se amarra entre o novo projeto de vida delas e a situação de conflito do país de origem, que ficou longe fisicamente, mas continua presente em cada passo que elas dão.

Elas receberam a reportagem na última terça-feira, véspera de mais um conflito marcado para todo dia 19 de cada mês, para pressionar a saída do atual presidente, Joseph Kabila. Muito ligadas às famílias que ficaram no Congo, as duas se debruçavam em preocupação.

“Conversei com minha mãe hoje (terça-feira), ela disse que amanhã vai ter protesto, e nada irá funcionar. Os soldados atiram contra a população, e todo o povo congolês que vive aqui fica com medo”, relata Princess. “As pessoas vão para a rua para reclamar seus direitos. Não sabemos quem vai morrer, se vão atirar em alguém da nossa família”, completa Benediction.

Para conseguir viver distante da guerra e ajudar a família no Congo, elas se juntaram na Benkip. A primeira a tocar o projeto foi Benediction, que uniu o “Ben” do seu nome e o “Kip” do sobrenome para criar a marca. Além de ter mãe costureira, ela estudou corte e costura na África. Trouxe na mala uns tecidos e começou a produzir na casa de um amigo do seu pai, onde mora, no bairro Mangueiras, no Barreiro. Quando a reportagem disse que ia ao local, ela resistiu, dizendo que seu ateliê só tinha uma única máquina de costura. Mas foi desse equipamento que saíram as primeiras camisetas de algodão com detalhes em tecido africano, as mais vendidas até hoje.

Encontro. Benediction conheceu Princess em Belo Horizonte, ao procurar alguém para trançar seus cabelos. A nova amiga conterrânea, que cursa publicidade e propaganda e está no Brasil desde 2010, logo agregou novos desenhos e ideias à marca, que tem também turbante, vestido, saia, blusa e sapato.

As duas são um manequim vivo da loja, que só existe – por enquanto – virtualmente. Muito vaidosas, ficam horas se produzindo. Apenas para as fotos que ilustram a reportagem foram mais de 20 minutos de preparação. É tanta transformação de vida que Princess quase não se reconhece. “A Princess de lá era muito diferente, cuidava do negócio da mãe, só tinha matemática na cabeça. Aqui aprendi a língua, comecei a criar coisas, escrever, aprendi a fazer roupa, fiquei mais social. Sou uma nova Princess”.

Peças. Das 110 camisetas feitas pela Benkip até agora, 90 foram vendidas, cada uma, a R$ 50. Outros modelos e preços estão disponíveis na página Benkip Fashion Designer, no Facebook.


Entenda

Origem. A República Democrática do Congo (ex Zaire) é foco de conflitos étnicos, políticos e também por recursos naturais.

Guerra. Princess lembra que era 17 de maio de 1997, dia do seu aniversário de 8 anos, quando o líder rebelde Laurent Kabila tomou o poder no país e começou a guerra. Kabila foi assassinado, e seu filho, Joseph Kabila, assumiu e está no poder até hoje.


Desafio

Viagem foi chance de sobreviver e de ter um diploma

Benediction Kipuni, 21, e Princess Kambilo, 27, vieram para o Brasil em busca de um “diploma reconhecido no mundo”, como diziam seus pais. Desde pequenas, escutavam que o destino delas e dos irmãos seria estudar fora da República Democrática do Congo, na África. Viver longe de casa, para os congoleses, representa chance de mais conhecimento, crescimento pessoal e também sobrevivência.

As duas contam que tiveram dificuldade de adaptação e acharam o português difícil (a língua falada no Congo é o francês). “A comida era diferente, o cheiro da cidade era diferente. Eu sentia muita saudade”, relata Princess. Mas logo elas começaram a estudar o idioma local e a fazer pesquisas na internet, o que não acontecia no Congo, onde o acesso é restrito. A oportunidade tem despertado ideias e novos projetos.

Benediction sonha em cursar moda, expandir sua marca de roupas, com loja física em Belo Horizonte, e trazer os pais e os quatro irmãos mais novos para viver na capital. “Lá no Congo não tem paz”, diz. Ela foi aprovada no vestibular em uma faculdade privada, mas não tem condições de pagar o curso. Agora, espera regularizar sua documentação no Brasil para tentar ingressar em uma universidade pública.

Princess pretende concluir o curso de publicidade e propaganda na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – ela está no segundo período –,voltar para o Congo e criar uma empresa de distribuição de carnes de qualidade a preços acessíveis.

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