Convívio

Mães detentas convivem com seus bebês, mas sofrem

Mulheres dizem que é difícil tanto privar os filhos de liberdade quanto deixá-los com guardiões

Dom, 25/06/17 - 03h00
Separação. Assim que deixam o centro de referência à gestante, bebês são entregues a guardiões | Foto: Seap/Divulgação

O nascimento do terceiro filho de Beatriz

, 29, aconteceu enquanto ela, estudante de direito, cumpria pena por tráfico interestadual de drogas. Aos cinco meses de gestação, ela foi transferida para o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte. A partir daí, o sofrimento dela foi dobrado. “Eu me sentia culpada por privar meu filho da liberdade. Ele não havia cometido nenhum pecado”, desabafa.

Por um ano, as detentas têm o direito de acompanhar o desenvolvimento dos filhos. No entanto, pesquisas coordenadas pela psicanalista Ilka Franco Ferrari, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), evidenciam que a maioria das presas se sente punida, mais do que privilegiada, com a tarefa solitária de ser mãe diuturnamente.

O primeiro estudo de Ilka, intitulado “Mulheres encarceradas: laços com o crime”, começou em 2011. Na época, 23 detentas participaram do projeto. A maior parte delas afirmou que estar naquela situação “era mais um castigo do que um privilégio”. O sentimento de desamparo era unânime, justificado pela distância da família e do companheiro, mas, sobretudo, pela obrigatoriedade de se responsabilizar por tudo relativo à criança.

Hoje, Beatriz, que saiu da prisão em 2015, avalia que conseguiu lidar melhor com a situação de estar sozinha com um recém-nascido porque já tinha outros dois filhos, mas ela presenciou um sofrimento maior das colegas de prisão. “Vi muitas meninas abaladas. Elas recebiam orientação, mas não havia uma ajuda participativa”, diz a universitária. Beatriz sofreu com a distância da família. “Eu sentia falta do pai dele (do filho). E minha família não ia me visitar por causa da distância”, revela.

A psicanalista finalizou o estudo em 2014 e encaminhou um relatório para as autoridades competentes. A Secretaria de Estado de Administração Prisional (Seap), pela assessoria de imprensa, informou que o centro conta com uma equipe multidisciplinar. De acordo com o órgão, a unidade não tem um pediatra, e, quando necessário, as crianças são atendidas no SUS.

Liberdade. Depois que deixam o centro prisional de Vespasiano, os bebês são entregues a guardiões. A Seap informou que não é sua competência o acompanhamento da criança após sua saída do centro. Ilka acompanha, desde 2014, a rotina de dez dessas crianças em uma nova pesquisa: “Laços sociais de crianças após o cárcere”. O objetivo é verificar os efeitos dessa convivência, praticamente dualizada, entre as mães e os pequenos, na socialização das crianças após sua saída do cárcere.

Conforme Ilka revelou, entre os guardiões, só um afirmou que cuidou da criança porque quis. Segundo a pesquisadora, a guardiã tirou licença do trabalho para passar um tempo com o bebê e lhe apresentar o mundo fora da cadeia.

A pesquisa mostra que, como o acesso a brinquedos e a estímulos é reduzido na prisão, algumas crianças demoraram a falar. “As funcionárias (dos centros) reconheceram que as crianças cresciam fortes em função da boa alimentação, mas demoravam muito a falar e tinham medo de tudo que chegava de fora”, conta.

Sem algemas

Berços. Na unidade, que só abriga gestantes e mães, as detentas não precisam usar algemas. As crianças dormem em berços que são colocados ao lado das camas de suas mães.

Nome fictício


Como funciona

Estado. A Seap informou que o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte, recebe grávidas de todo o Estado.

Exames. A unidade, com capacidade para 78 internas, abriga 44. Antes de serem encaminhadas ao centro, elas passam por exames para confirmar a gravidez.


Escolha

Opção. As mães podem abrir mão de ficar com os filhos na prisão durante o primeiro ano de vida. Nesses casos, os bebês ficam os pais ou com os avós ou com um responsável legal.

Justiça. As mães podem manifestar sua opção e aguardar os trâmites do processo de guarda na Justiça.


Mudança

Separação é mistura de dor e alívio

Após um ano de convivência com seus bebês, as detentas do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, na região metropolitana da capital, são separadas deles. Para muitas, esse é um momento que mistura dor com a certeza de que o filho terá mais estímulos fora do cárcere. “É a pior situação do mundo. Parece que estão levando uma parte da gente”, descreve a estudante de direito Beatriz (nome fictício), que passou por essa experiência.

Ela conta que uma tia foi buscar o filho na unidade prisional. “Mesmo sabendo que ele está bem-cuidado, a gente se preocupa”, diz. A guardiã do bebê de Beatriz já cuidava dos outros dois filhos dela.

Segundo a psicanalista Ilka Franco, a dor sempre está presente quando o bebê deixa o cárcere. “A separação, em geral, era muito sofrida para a mãe e para a criança, ainda que a mãe se sentisse aliviada da responsabilidade e desejosa de que a criança conhecesse um mundo diferente daquele”, considera.

Estímulos. Fora do presídio, as crianças têm contato com muitas novidades, e algumas situações, como a presença de homens, geram estranhamento. “Ela (a filha) ficou um pouco assustada, né? Não estava acostumada com muita gente. Com homem, também não”, relatou uma das presas à pesquisadora. (AD)


Depoimentos

“O sofrimento aqui é maior .Tenho mais dois meninos lá fora, e vai fazer sete meses que eu não vejo meus filhos. É muito difícil.”

“No fechado, até o psicológico da gente é menos abalado. Eu tenho problema de depressão, sabe? É foda, o choro de criança me incomoda.”

“É difícil demais, porque tudo depende da gente, tudo, tudo tem que ser a gente. Se a criança chorar a semana inteira, toda noite, semana inteira... Se for lavar cabeça, leva junto; se for lavar roupa, leva junto; vai tomar banho, leva junto. É 24 horas mesmo, grudado!”

“A mesma rotina que era a minha, era a dele. Não tinha nada de diferente. A diferença é que eu entendia o que tava acontecendo, e pra ele era tudo alegria. Até que eu entreguei ele pra minha mãe, com 1 ano, né? Então, agora foi muito difícil pelo fato dele não, é... não se acostumou com as pessoas, chorava, sentia minha falta.”

“Minha menina é muito esperta. Se alimentava muito bem antes. Hoje, não. Hoje, ela está bem magrinha. Porque eu afastei dela, porque sou usuária de drogas. Eu deixei minha filha por causa das drogas e eu tenho muita vergonha disso!”

Depoimentos constam na pesquisa: “Mulheres encarceradas: laços com o crime”, realizada pela psicanalista Ilka Franco.

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