PERFIL

Nove mil quilômetros de solidariedade

Conheça a belga que se apaixonou por uma pequena cidade do Vale do Mucuri e deixou seu país de origem para mudar a vida de mais de 100 famílias brasileiras

Por JULIANA BAETA
Publicado em 31 de julho de 2014 | 16:27
 
 
Ela preferiu deixar a comodidade de sua vida na Bélgica, para arregaçar as mangas no Vale do Mucuri, em Minas Gerais Jhonathan Nicoletti

O Brasil é um dos destinos preferidos dos turistas estrangeiros para passar as férias e, de fato, não faltam motivos para isso: pessoas sorridentes e receptivas em todos os cantos, belezas naturais para dar e vender - inclusive, literalmente - e um clima tropical bem diferente das terras frias da Europa. Mas o que trouxe a belga Greet Fleurackers, de 56 anos, a terras brasileiras foi justamente o oposto dos atrativos turísticos: a miséria.

Greet nasceu na Bélgica e desde que se entende por gente, o que aconteceu aos 11 anos, segundo ela, notou o interesse nato em ajudar as pessoas. "Eu ainda estava na escola e tivemos a visita de um padre que era missionário na África. Ele contou sobre o trabalho que desenvolvia e eu percebi que era exatamente isso que eu gostaria de fazer da minha vida". No entanto, como não tinha religião, a belga decidiu que o caminho seria diferente ao do padre.

A primeira empreitada aconteceu quando ela tinha 20 anos e largou tudo para ir para a Indonésia, onde começou a exercer a sua verdadeira vocação: lutar por um mundo melhor. "Apesar de ter me formado na Bélgica como designer de janelas, curso que nem existe aqui no Brasil, sempre estudei sociologia. Quando caí no mundo e fui para a Indonésia, vi as coisas tão estranhas e diferentes, tão desiguais, e algo mudou na minha cabeça. Me envolvi com pessoas que estavam precisando de ajuda", conta a belga, que também viajou para a Coreia do Sul com o mesmo objetivo.

A ligação com o Brasil, no entanto, ocorreu quase que por sorte. Ainda na Bélgica, em 2003, Greet conversava em uma sala de bate-papo com pessoas do mundo todo para angariar informações e treinar o idioma indonésio, já que estava querendo voltar para lá a fim de saciar a sede de ajudar as pessoas. Foi assim que conheceu Nivande Machado, mineiro de Águas Formosas, uma pequena e carente cidade do Vale do Mucuri. Achando que no Brasil os problemas não eram assim, tão gritantes, e que em outras partes do mundo a carência de ajuda era maior, a belga insistia em voltar para a Indonésia, mas Nivande acabou a convencendo a conhecer o Brasil, por meio de uma visita despretensiosa.

"Desembarquei em Belo Horizonte e de imediato fui desembocar no bairro Gameleira onde, na época, a população estava sendo formada por meio de uma ocupação. A situação ali era muito ruim, não havia esgoto, tampouco estrutura, e foi onde comecei a ajudar algumas pessoas. Voltei para a Bélgica e passei a angariar doações para comprar cestas básicas para aquelas pessoas. Mas não ficamos só nisso. Começamos a realizar cursos de artesanato para tirar os meninos da rua", conta Greet, que se mantém com a pensão deixada pelo ex-marido.

Curiosamente foi na Bélgica que começou o que mais tarde viria a se tornar a Associação Vale Viver de Promoção Social, para ajudar crianças e famílias brasileiras. No país europeu Greet começou a centralizar as doações e, quando conheceu Águas Formosas, o trabalho foi potencializado. Ali nasceu, então, a sede brasileira do projeto.

Transitando frequentemente entre os dois países, Greet decidiu morar definitivamente no Brasil, em 2009, justamente na cidadezinha do Vale do Mucuri, foco principal do projeto. "Meus filhos já estão formados e criados e eu precisava de algum objetivo na minha vida, precisava fazer alguma coisa legal, algo que me fizesse sentir útil, como ajudar as pessoas", diz a mulher, insaciável.

"Elas roubaram meu coração"

Ao chegar no Vale do Mucuri, Greet se afeiçoou imediatamente às crianças dali. "O que me fez chorar muito e até hoje faz, é a situação das crianças daqui, que ficam na rua, sem roupa, sem comida, muitas delas entrando no mundo das drogas desde muito cedo, coisa de 8 anos de idade. Elas roubaram meu coração", conta.

O primeiro passo que desenvolveu para fazer a diferença foi prover a merenda para os pequenos e inserir vegetais na alimentação deles. "Na comunidade, quando tinha comida em casa era arroz, feijão ou macarrão. As crianças não conheciam verduras e muitas delas tinham problemas de saúde como vermes e problemas de vista devido a falta de nutrientes e vitaminas no organismo. Começamos a fazer sopa com vegetais bem raladinhos, para elas não estranharem", lembra.

O que começou como uma medida paliativa para nutrir e alimentar os pequenos se tornou o carro-chefe do projeto. Hoje, a Associação Vale Viver ajuda 130 crianças de Águas Formosas e, consequentemente, as suas famílias. "Eu acho que o objetivo sempre foi melhorar a vida das famílias da cidade, por meio das crianças. São elas que precisam estudar para garantir um futuro melhor a elas e a seus familiares. O projeto consiste também em conversar com os pais dessas crianças e orientá-los a mantê-las na escola. Explicamos a eles a importância de assegurar o futuro dos pequenos e também esclarecemos a eles os direitos que eles têm. Muitos nem sabem o que é isso, apesar de serem cidadãos brasileiros", conta.

"Algo que contribuiu para a melhoria dessas famílias foi a criação do bolsa-família e é também por isso que lembramos aos pais a necessidade de se manter as crianças na escola a fim de assegurar o benefício", completa Greet. Para ela, as necessidades básicas como alimentação e vestimenta não se sobrepõe à necessidade essencial de solucionar o problema: "não é só dar uma cesta básica e uma roupa, apesar disso também ajudar bastante. Mas quando você tem que mudar alguma coisa, você tem que começar pela raiz. Como temos muitas crianças aqui, conseguimos a mudança por meio delas".

O projeto

A Associação Vale Viver de Promoção Social, como o nome já diz, tem por objetivo mostrar às famílias de Águas Formosas que vale a pena viver, mesmo com recursos escassos e dificuldades. "Algumas pessoas ali realmente já foram tomadas pela depressão, pela desmotivação. A pobreza acaba gerando falta de perspectiva, de esperança em um futuro melhor", explica Greet.

Com a atuação da ONG, as várias famílias da cidade recebem uma cesta básica todo mês e 130 crianças ganham alimentação de segunda a sábado. Muitos alimentos e materiais escolares ou de higiene pessoal são adquiridos com o dinheiro de doações vindos diretamente da Bélgica. Os voluntários de lá realizam visitas anuais à cidade a fim de conhecer as pessoas que ajudam e se mobilizam para conscientizar ainda mais belgas e informá-los sobre sobre a cidade mineira, localizada a cerca de nove mil quilômetros de distância da Bélgica.

Além disso, o projeto ensinou a muitos moradores de Águas Formosas como manter uma horta e, desta forma, prover vegetais para complementar o cardápio. "Tínhamos uma horta muito grande na comunidade, mas precisamos do espaço para construir uma quadra para os meninos. Mesmo assim, o conhecimento ficou e foi disseminado. Vizinhos passaram para vizinhos como cuidar das plantas", conta Greet.

A Vale Viver também oferece cursos para crianças, adolescentes e adultos da comunidade, como aulas de informática, cursos de cabeleireiro e manicure, aulas de teatro, dentre outros. "É muito gratificante ver os meninos crescendo e andando com as próprias pernas. O meu primeiro aluno de inglês, por exemplo, hoje, é professor do idioma em uma escola particular de Betim e pretende levar toda a família, que assim como ele é de Águas Formosas, para lá. É ele que sustenta os familiares, o que me deixa muito orgulhosa", disse.

Outro filho da Vale Viver é o projeto Criança Canhota, um movimento de ocupação artística formado por alunos de uma oficina de teatro que percorre as cidades do Vale do Mucuri ministrando oficinas, levando cinema ao ar livre e disseminando o conhecimento que tiveram durante a vivência na associação.

Apesar das vitórias e das vidas transformadas, Greet lamenta que algumas crianças, mesmo com a ajuda da ONG, acabam entrando no mundo das drogas e da criminalidade. "Infelizmente alguns viram traficantes ou morrem, o que me deixa extremamente triste. Só de falar eu fico arrepiada. Mas nós fazemos o que podemos para tirá-las deste caminho que acaba sendo uma das alternativas para se escapar da pobreza", conta.

O sorriso da belga volta a se iluminar ao falar da quantidade de pessoas que saem do projeto com uma função, como a de ator, ou que vão trabalhar em casas de família após aprenderem os afazeres domésticos como voluntários na ONG. E o mundo também volta se iluminar e fica um pouquinho melhor com histórias como a de Greet, que saiu de tão longe para fazer a diferença na pequena comunidade de Águas Formosas. 

Para ajudar

A Vale Viver acabou de inaugurar um pequeno espaço para uma biblioteca em Águas Formosas, e passa agora a contar com doações, não apenas de alimentos, materiais de higiene e de limpeza, roupas e dinheiro, mas também de livros.

Para entrar em contato e saber como ajudar, o e-mail é vale-viver@hotmail.com e o telefone é (33) 3611-1062.

Na internet, as páginas são:

comartevaleviver.weebly.com/

facebook.com/pages/Associacao-Vale-Viver-de-Promocao-Social

Conheça também o projeto Criança Canhota lendo o artigo de Júlio Assis em O TEMPO, e também por meio da página facebook.com/CriancaCanhota