Operação 'De volta para Canaã'

Seita religiosa é suspeita de roubar e escravizar fiéis em Minas

Conta bancária dos líderes investigados é estimada em mais de R$ 100 milhões; eles se aproveitavam da fragilidade dos fiéis e os convenciam a doar seus patrimônios para a seita

Seg, 17/08/15 - 11h09

Com o lema "tudo é de todos", uma seita religiosa suspeita de roubar e escravizar fiéis, instalada há pelo menos 10 anos em Minas Gerais, começou a ser desmantelada pela Polícia Federal nesta segunda-feira (17).

Ao todo são seis mandados de prisão temporária expedidos contra os líderes da seita, 47 mandados de condução coercitiva e 70 de sequestro de bens como imóveis, veículos e dinheiro, totalizando 129 mandados judiciais. 

A operação batizada como "De volta para Canaã" começou na madrugada desta segunda e conta com a participação de 190 policiais federais.  

Segundo informações da assessoria da Polícia Federal, os fiéis eram atraídos pela seita em momentos de necessidade e fragilidade. Ao procurar por um suporte espiritual, eles chegavam à organização e acabavam sendo levados para uma das seis fazendas mineiras da seita, onde acabavam realizando serviços agrícolas e domésticos para os líderes. 

Lavagem cerebral

O delegado João Carlos Girotto, responsável pelo caso, informou que a seita tem cerca de 7 mil fiéis vivendo nas propriedades rurais do grupo (sendo 70% em Minas). Apesar da operação deflagrada nesta segunda-feira, eles continuam vivendo nas fazendas e trabalhando para a organização criminosa. 

"Elas passaram por uma lavagem cerebral muito aprimorada e realmente acreditam que o que elas estão vivendo é correto", afirmou. Segundo dele, o  Ministério do Trabalho e Emprego cuidará, em uma segunda fase da ação, de resgatar as pessoas que estão vivendo em trabalho escravo. 

Girotto disse ainda que o objetivo da investigação não é colocar um fim à religião ou ao templo, que continuará funcionando em São Paulo, mas, sim, acabar com o esquema criminoso por trás da seita. "Nosso foco hoje foram os líderes, que manipulavam essas pessoas com a promessa de que tudo era de todos, que o mundo acabaria e o novo templo seria em comunidade", disse o delegado. 

As investigações iniciadas em 2011, segundo ele, é que permitiram à Polícia Federal entrar no "coração da seita" e descobrir como todo o esquema funcionava. "Foi uma investigação bastante complexa pelo nível de atuação do grupo", comentou. Os bens adquiridos dos fiéis eram vendidos e colocados no nome de "laranjas", conforme as investigações. 

Líderes milionários

Os mandados, expedidos pela 4ª. Vara Federal em Belo Horizonte, foram cumpridos nas cidades de Pouso Alegre, Poços de Caldas, Andrelândia, Minduri, São Vicente de Minas, Lavras e Carrancas, em Minas Gerais, Remanso, Marporá, Barra, Ibotirama e Cotegipe, na Bahia, e na cidade de São Paulo.

De acordo com a Polícia Federal, as investigações apontaram que líderes da seita "Jesus, a verdade que marca" estariam mantendo os fiéis em regime de escravidão nas fazendas onde promoviam rituais religiosos.

Ao ingressarem no grupo, as pessoas eram convencidas a doar seus bens e a assumir o compromisso de viver em uma comunidade onde "tudo seria de todos". Em seguida, eram obrigados a trabalhar sem qualquer tipo de pagamento.

A investigação da Polícia Federal apontou que o patrimônio recebido pelos líderes da seita em doações dos fiéis está estimado em pouco mais de R$ 100 milhões. Ainda de acordo com o que foi apurado, parte da quantia foi usada na compra de grandes fazendas, casas e veículos de luxo.

Crimes

Segundo a polícia, os envolvidos responderão pela prática dos crimes de redução de pessoas à condição análoga à de escravo, tráfico de pessoas, estelionato, organização criminosa, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.

Contra a exploração

A operação deflagrada nesta segunda-feira dá continuidade aos trabalhos iniciados em 2011, que culminaram com a deflagração da "Operação Canaã", em 2013.Na ação, Polícia Federal, Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério Público do Trabalho realizaram inspeções em propriedades rurais e em algumas das empresas urbanas, o que possibilitou identificar um sofisticado esquema de exploração do trabalho humano e lavagem de dinheiro levado a cabo por dirigentes e líderes religiosos.

Somente em 2015, a Polícia Federal começou a investigar mais de 50 casos envolvendo o tráfico e a exploração de pessoas no Brasil.

Caso antigo

Em outubro de 2005, em reportagem exclusiva de O TEMPO, o jornalista Murilo Rocha anunciava a chegada de forasteiros à cidade de São Vicente de Minas e já sinalizava, há 10 anos, a criação da seita investigada atualmente pela Polícia Federal. Em trechos da reportagem, já era possível perceber a falta de informações e o mistério em torno da seita:

"A vida dos mais de 400 integrantes da comunidade instalada dentro e nos arredores de São Vicente de Minas antes da chegada ao município ainda é cercada de mistérios. Ao explicaram de onde vieram, os forasteiros se limitam a dizer o nome de diversas cidades do interior do Estado de São Paulo, como Osasco, Jundiaí e Olímpia, além da própria capital. Nomes de igrejas, empresas, lojas, clubes ou escolas frequentados por eles em terras paulistas são sempre evitados ou diluídos em longas explicações. Segundo eles, parte dos integrantes era ligada a igrejas evangélicas, mas as reuniões para formar o grupo e a decisão de migrar para outro Estado foi tomada fora de quaisquer instituição.

'Eram reuniões em residências. Frequentavam todos os tipos de profissionais. Empresários, padeiros, engenheiros', explica Edmilson Pereira Silva, o porta-voz do grupo. O nome dele e de outros integrantes da comunidade não constam nem mesmo em listas telefônicas do Estado de São Paulo e atribuem isso à transferência deles há mais de um ano para Minas. O único líder do grupo localizado pela reportagem foi o fazendeiro João Antônio Buzatto. Ele mora em Olímpia, em São Paulo, e confirmou estar vendendo a fazenda no interior paulista para se juntar ao grupo em Minas." 

Atualizada às 18h00.