Sexualidade

Transtorno de gênero é tabu e sofrimento para adolescentes 

Mudança de nome social ainda é desafio para pais e colegas de escola

Dom, 23/08/15 - 03h00
Mudança. No quarto de Thiago*, a cortina e a parede em tons de lilás são únicos resquícios do passado | Foto: LEO FONTES / O TEMPO

Quando a chamada chega à letra T, os alunos do primeiro ano do ensino médio de uma escola em Contagem, na região metropolitana da capital, já sabem que o professor vai quebrar o protocolo. Em vez de chamar por Tamires

, o docente o chama pelo apelido. É a forma mais eficaz e respeitosa de atender o pedido do adolescente de 14 anos, que não se reconhece como menina e decidiu assumir sua identidade de gênero masculina e agora se apresenta como um garoto.

A história e os dilemas do menino são parecidos com os vividos por Nereu, Fátima e tantos outros jovens que não se identificam com o gênero de nascimento desde os primeiros anos de idade. Os relatos são de dúvidas, sofrimento e preconceito, muitas vezes vindo de colegas e até familiares.

Assim que Tamires pediu para ser chamado de Thiago

, a mãe foi acionada para ir ao colégio onde o jovem estuda desde o primeiro ano do ensino fundamental. Ela foi consultada pela direção do colégio, e, em comum acordo, decidiram se referir ao menino pelo apelido. Além disso, ele conseguiu minimizar o constrangimento na hora de ir ao banheiro. “Tem menina que acha estranho quando eu entro, então agora posso ir ao masculino ou ao feminino”.

Para a mãe, Elena

, a ida ao colégio foi mais um passo no caminho de aceitação do filho. Escolhas banais, como não gostar de usar roupa rosa, trocar o balé pelo futebol e não brincar de boneca foram sinais iniciais de que o filho poderia ter um transtorno de identidade de gênero. “Ele preferia martelo e serrote. Eu falava para ele: se você nasceu menina, é menina. E ele dizia: ‘Mãe, não tá em mim, eu não escolhi’. Chorávamos juntos”, conta.

Mas o incômodo com o corpo era cada vez mais latente no jovem, que diz combinar mais com o físico masculino e pretende fazer cirurgia para a retirada da mama. “Quero um dia poder andar sem camisa”, revela.

Enquanto o corpo não muda, é nas roupas e nos trejeitos que Thiago vai investindo sua alteração de gênero. Chega a trocar alguns sapatos e peças do guarda-roupa com o pai. Só o quarto ainda mantém a cortina e uma parede em tons de lilás, resquícios de seu passado. “Já pedi meu pai para mudar isso”, diz Thiago. A festa de debutante trocou por uma viagem a Miami. “Não condiz comigo”, avalia.

Não Aceitação. A igreja foi um artifício usado pelos pais para tentar convencer o filho de que ele estava enganado. A mesma tática foi usada com Nereu

, um rapaz de 19 anos que afirma ter se reconhecido como transexual aos 14. Desde os 7, o menino de Ribeirão das Neves, também na região metropolitana, já sentia um desconforto com o corpo feminino.

“Desde pequeno eu queria andar sem camisa e ter nascido menino”, afirma. Há sete meses ele realiza tratamento hormonal, atendido pelo plano de saúde em nome da mãe, apesar da família evangélica. “Mas meu pai diz que isso é uma fase e que Deus vai fazer a obra na minha vida.” Os pais não aceitam a mudança de gênero e ainda o chamam pelo nome de batismo.

Preconceito. A manifestação de gênero causou ruídos nas escolas onde Nereu estudou. O rapaz vivia sendo chamado de maria-homem. “Uma professora comentou que eu não tinha postura adequada de menina”, lembra.

No colégio, Thiago, com frequência, também ouvia alguma frase que o machucava. “Aos 10 anos, uma menina da minha sala disse que, enquanto eu não nascesse de novo e não tivesse um pênis, ela não me trataria como menino”, diz. Procurada, a direção da escola, onde o menino estuda, preferiu não falar sobre a situação dele.

FOTO: LEO FONTES / O TEMPO
Mudança. No quarto de Thiago

, a cortina e a parede em tons de lilás são únicos resquícios do passado

Minientrevista

“Se eu não ficar do lado dele, quem vai ficar?”

Mãe de Thiago

Como a senhora percebeu que Thiago não se reconhecia em seu gênero?

Ele sempre usava roupa masculina. Eu colocava sainha, blusinha rosa, mas ele nunca gostou de rosa e ficava emburrado. Eu dava boneca, mas ele não queria. Brincava de martelo, serrote, capacete de pedreiro e chave de fenda.

Qual foi sua reação inicial?

Eu pensava que ele ia mudar quando crescesse. Que era assim porque ele estava gordinho e infeliz com o corpo, mas após os 10 anos percebi que não ia mudar. Eu falava: “Se você nasceu menina, é menina, não existe isso (de mudar de gênero)”. E ele dizia: “Mãe, não está em mim, eu não escolhi isso”.

A senhora também deve ter sofrido.

Chorei muito com ele, a gente brigava. Ele dizia que estava no corpo errado, e eu dizia que a cabeça dele é que estava errada.

E como a senhora procurou ajuda?

Li artigos e procurei auxílio médico, mas mesmo entre os médicos falta informação. Já teve médico que não soube me explicar o que acontece.

Desde o início a senhora o apoiou?

Se eu não ficar do lado dele, quem vai ficar?

Foi difícil passar a chamá-lo pelo nome masculino?

Chamo pelo apelido, mas quando estou estressada acabo chamando pelo nome de nascimento. Ele fica bravo.

Ameaças e tentativas de suicídio

Na pacata Iraí de Minas, município do Triângulo Mineiro, o caso de uma adolescente que não se identificava com seu gênero de nascimento quase acabou em tragédia. Não precisou de muito tempo para Fátima

perceber que seu corpo e sua mente não falavam a mesma língua. Nascida em um corpo masculino, aos poucos seus trejeitos femininos foram se exacerbando.

“Eu brincava só com as meninas, e minha família fingia que estava tudo bem”, relata. Um certo incômodo nos colegas da escola foi se inflamando até quase acontecer o pior. “Os meninos do colégio falavam que iam me matar. Fiquei com medo e tive que abandonar os estudos”, lembra.

Aos 11 anos, no desabrochar da adolescência, a pressão aumentou. Seu nome era comentado na cidade. Mais tarde, acabou bebendo veneno. “Não queria viver mais com esse órgão genital”, diz a jovem que ainda tentou se enforcar e cortar os pulsos. Hoje, com 25 anos, Fátima se diz transexual e faz tratamento com psicólogo e psiquiatra.

Ela toma hormônio por conta própria desde os 18 anos. “Sobrevivi, mas é uma dor muito forte”, revela.

Procura por ajuda tem crescido

Os debates envolvendo o tabu de não se reconhecer em seu gênero de nascimento têm ganhado espaço na sociedade. A consequência direta disso é um aumento no número de adolescentes que procuram ajuda para tratar da questão. A avaliação é da psicanalista Marina Caldas Teixeira, que fez mestrado e doutorado sobre transexualidade e tem recebido cada vez mais pacientes.

O Sistema Único de Saúde (SUS) não oferece em Minas Gerais o acompanhamento multidisciplinar – psicológico, psiquiátrico, endocrinológico, entre outros – para quem sofre do transtorno de gênero. Isso, para especialistas, é um problema, uma vez que o adolescente que manifesta incômodo com seu corpo precisa procurar ajuda e orientação, ainda que a definição da condição de transexual caiba somente a ele e não aos médicos. O tratamento é irreversível.

FOTO: Editoria de arte
 

“Eu nunca vi ninguém assumindo isso rapidamente. São anos em que o sujeito vai tentando entender o que está acontecendo com ele. Isso é uma conclusão íntima em função de experiências pessoais”, afirma Marina Teixeira. Desde que ouviu a palavra transexualidade pela primeira vez, Natan

, 19, passou quatro anos pesquisando para ver se era aquilo que ele estava vivenciando. “Somente depois me reconheci como homem trans”, diz o rapaz, que nasceu com o corpo feminino.

De acordo com Marina Teixeira, o desconforto de estar em um corpo considerado “estranho” acaba muitas vezes se desdobrando em desespero. “Tem gente que se mutila, se maltrata e tem certo nojo do corpo. É uma relação de estranhamento vivida com sofrimento e angústia”, diz.

A família, fundamental para o desenvolvimento de qualquer adolescente, também tem aprofundado o nível de informação sobre identidade de gênero. “A transexualidade é cada vez mais comum, e tenho recebido até pais mais serenos para enfrentar o problema”, revela.

Dificuldade. O número de especialistas não segue o mesmo movimento, e pacientes encontram dificuldades para conseguir um acompanhamento adequado, uma vez que existem posições diferentes sobre como tratar o problema. “O primeiro psicólogo que me atendeu era também padre. Em vez de me proporcionar autoconhecimento, você imagina como foi”, relata o jovem Nereu

, 19, transexual residente em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte.

Em Contagem, na região metropolitana da capital, a mãe de Thiago

, um menino de 14 anos que não se identifica com seu gênero de nascimento, conta que o problema se repetiu quando foi tentar ajuda para o filho. “Fui a um médico que não soube me explicar o que estava acontecendo com meu filho”, afirma.

Na falta de um diagnóstico certeiro, avaliar o paciente com transtorno de gênero como homossexual é um grande equívoco, afirmam especialistas. “Comparar essas duas coisas é um grande absurdo”, diz Marina Teixeira. “Isso é uma compreensão equivocada e uma confusão entre orientação sexual e identidade de gênero”, completa a psicóloga Dalcira Ferrão, coordenadora do grupo de trabalho sobre psicologia e diversidade sexual do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais.

Polêmica. A transexualidade é considerada pela medicina como um transtorno de identidade de gênero – ainda que a psicologia discorde do conceito de doença. A maior parte acontece ainda na adolescência, segundo Marina Teixeira. “É um desconforto com o próprio corpo que às vezes passa desapercebido pela família”. No entanto, é preciso cuidado em afirmações precipitadas. Um menino que brinca de boneca pode não ter nada a ver com a transexualidade.

A psicanalista explica que as crianças têm a sexualidade “naturalmente ambígua”. “Como uma menina criada no meio de meninos que prefira usar roupas masculinas. Se vestir de menino ou menina não é um problema. Esses conceitos vão sendo construídos na infância e são estereótipos”.

Nomes fictícios

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