Vivência

Uma madrugada entre o frio das ruas e o calor das relações

Equipe de O TEMPO passa noite no centro de BH para experimentar realidade de quem não tem casa

Sex, 17/06/16 - 03h00

São 5h30, e a temperatura em Belo Horizonte gira em torno de 10°C. Eu estava em uma calçada da rua Aarão Reis, lugar em que estive durante várias madrugadas que antecederam a de ontem. O que nunca havia percebido é que, sem os amigos, as bebidas e o embalo da música, aquele lugar é gelado e carregado de desamparo, vícios e histórias tristes. Em meio a essa onda de inverno polar, me embrenhei em mais uma noite no baixo centro, mas, dessa vez, para descobrir como são as madrugadas ao relento e a vida de quem só tem um cobertor e uma calçada gelada para se abrigar. E uma coisa eu garanto: passar frio é só para quem é forte.

Uma das primeiras pessoas que vi ao chegar foi uma jovem, um tanto marrenta, a Cibele, que logo perguntou o que eu fazia ali. Disse que ia escrever sobre aquela noite e que queria entender como ela driblava o frio. A resposta foi cheia de humor. “Ah, então eu vou sair no jornal?”. Logo vi que ela seria minha companheira da madrugada. Aos 28 anos, ela se mostrou protetora; e em meu momento de catarse, às 5h30, foi quando tive certeza disso. Após quase uma hora zanzando, ela retornou com uma coberta a menos para nossa maloca. “Eu dei para aquele cara ali. Ele estava com frio”, se justifica. Ninguém parece se importar, afinal, cobertores são como cigarros: nunca se nega a quem precisa.

Assim, solidários e quase em um ritual familiar, eles resistem às baixas temperaturas. Eu não aguentei a noite toda com minhas duas blusas de frio. Foi preciso buscar uma coberta e me aquecer na fogueira de um amigo de Cibele, que chegou a me oferecer seu casaco mais novo. Houve um momento em que eu estava tão encolhida que um homem me ofereceu um cobertor. Neguei, afinal, voltaria para minha casa ao fim da jornada, com direito a café com leite e afago da minha gata. Mas perceber o sentimento de acolhida foi incrível.

Alternativas. Por volta de 1h, logo que cheguei ao centro, a temperatura girava em torno de 12°C, e as ruas estavam quase desertas. Em meio à névoa que colore a noite fria, a paisagem é dividida entre alguns gatos pingados voltando para suas casas e os verdadeiros ocupantes daquele território. Separados em vários grupelhos, os moradores da rua Aarão Reis se ajeitavam para mais uma madrugada gelada. Ainda estavam acordados, tomando os últimos goles de cachaça ou fumando “brita”, a tal pedra que mata. Tudo quase em um ritual de iniciação noite adentro.

Por volta de 2h30, pela primeira vez, o frio apertou. Cibele saiu com um amigo, Aloízio, para fumar – ela riu de mim quando perguntei do efeito do crack sobre o frio. Marco Aurélio, 49, é quem divide a “maloca” com ela. Ele diz não gostar da droga, que tanto o agrediu em outros tempos. Enquanto esperava os colegas, o que aquecia seu peito era uma gorda dose de cachaça.

Meia hora depois, Cibele retornou com o companheiro. Com a droga, eles pareciam não perceber a temperatura. Ela usava um short e apenas um casaco. Ele, de bermuda, chegou a tirar uma das blusas de frio. Já eram 3h30, e para Marco Aurélio, a saída foi me pedir ajuda para fazer uma pequena fogueira. Irônico, mas o material que ele me ofereceu para tal eram páginas antigas deste mesmo jornal.

Ele vive na rua há 20 anos, entre idas e vindas. Soropositivo, homossexual e um dos poucos que não se rendem ao crack, para ele definir o que os faz viver na rua é difícil. “A rua nos proporciona drogas e bebida”, lamenta. Ele conta que aquela noite deu para passar bem, mas que houve momentos no início da semana em que ninguém conseguia dormir, tamanho era o frio.

E eu senti frio. Tremi, ri, me emocionei. Mas o mais importante foi perceber que o frio dói, porém a vida sem ser notado é ainda pior. As pessoas levam comida, cobertas, mas não sei se olham para aquela parcela da população.

Para Cibele, Bárbara é nome de gente rara. Mas ela não deixou por menos: “Assim como Cibele. Quantas Cibeles você conhece?”. Sim, ela é rara. Vive na rua há mais de 17 anos. Tem dois filhos, de 9 meses e de 10 anos. Seu sonho: voltar para casa. “Comida de mãe é a melhor coisa do mundo. Lá não uso drogas e sou feliz”. O vício a impede, mas ela me prometeu, quase ao raiar do dia, que ontem voltaria para Santa Luzia, sua casa. Mesmo assim, quase quando nos despedíamos, acendeu mais uma brita.

Mesmo com o frio, a jovem nunca dorme à noite. Tem medo do desconhecido. Tenho certeza que quando fui embora, às 6h, ela sonhou com sua casa. E eu sonhei com Cibele, com sua força e com o frio, que acabou passando despercebido frente a ela.

Glossário

Os moradores de rua têm suas próprias gírias, uma maneira peculiar de se comunicar. Veja aqui alguns esclarecimentos e curiosidades:

Maloca: casa, cantinho, lugar onde passam a noite. Amontoados, todos juntos.

Manguear: pedir esmola, pedir comida ou qualquer coisa.

Farmácia: O “lugar de cura”. A distribuidora de bebidas onde pegam mais uma dose.

Cachaça: O veneno ou “a do mal”.

Carmem: A favela da Pedreira Prado Lopes, no bairro Lagoinha, na região Noroeste da capital, onde eles compram a maior parte da droga.

Viana: faca

Brita: crack

“Vivo na rua porque eu quero. Tenho liberdade. Faço minhas coisas, com quem eu quiser. E ninguém vai sofrer por minha causa.” Adilson, morador de rua – ele não revelou a idade

“As primeiras noites de frio foram muito difíceis. Cheguei a dividir uma coberta com um casal porque não conseguia dormir.” Marco Aurélio, 49, morador de rua

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