Desejo fatal

Especialista debate o que leva uma pessoa a ter atração por criminosos

Conhecido como “hibristofilia, fenômeno é estudado por diversos ramos da ciência e ajuda a entender o interesse pelo tema manifestado em filmes, séries e livros

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 30 de janeiro de 2024 | 06:30
 
 
Fenômeno é estudado por diversos ramos da ciência e ajuda a entender o interesse pelo tema manifestado em filmes, séries e livros Foto: AntonioGuillem/iStockphoto

Com marcas de batom, perfume espirrado e até itens íntimos, mais de mil cartas chegaram, no intervalo de um mês, ao endereço de Francisco de Assis Pereira. Condenado pelo assassinato e estupro de ao menos 16 mulheres, ele confessou 11 crimes sexuais contra jovens entre 18 e 24 anos, a quem seduzia com falsas promessas de uma vida de modelo para levá-las até um matagal e, lá, violentá-las até a morte. 

O caso do “Maníaco do Parque”, condenado em 1998 e atualmente preso na Grande São Paulo, tornou-se emblemático a ponto de embasar séries, filmes e livros, menos pela crueldade do serial killer, que enterrava os corpos das vítimas no parque da cidade, do que pela reação de um número considerável de mulheres dispostas a se casarem com ele, como demonstra “Loucas de Amor: Mulheres que Amam Serial Killers e Criminosos Sexuais”, publicado pelo jornalista Gilmar Rodrigues, em 2009. 

Em 2023, a Amazon anunciou a produção de um documentário, intitulado “O Maníaco do Parque: A História Não Contada”, e um filme protagonizado por Silvero Pereira sobre essa mesma história real e sinistra. De acordo com o psiquiatra Bruno Brandão, esse tipo de acontecimento tem despertado o interesse na comunidade científica para “um campo vasto, que ainda é muito pouco explorado e não se restringe à psiquiatria”. 

Complexidade 

Longe do consenso de uma teoria única, a atração por criminosos, conhecida como “hibristofilia”, “é um fenômeno multifacetado e complexo, estudado por diferentes áreas”, que reúne, entre outros, esforços de profissionais da psicologia, da sociologia e do direito criminal. A exposição midiática e a maneira como os criminosos são tratados na cultura popular, além de traços de personalidade e comportamento considerados inerentes, como assertividade, perspicácia e ousadia, são alguns dos motivos listados para despertar esse interesse em grupos de pessoas. 

Sabendo que cada indivíduo é único e não existe receita-padrão, elementos como a busca por poder e dominação costumam ser frequentes. “Seja pela transgressão social, ou, literalmente, pela demonstração de força, criminosos exercem um poder sobre os outros que é capaz de gerar atração”, pontua Brandão. A sensação de estar protegido ao se aliar romanticamente a um criminoso e em perigo no caso contrário, além de um fascínio por “aqueles que desafiam normas estabelecidas pela sociedade”, também devem ser levados em conta, associados a uma espécie de projeção. 

“Muitas vezes, a pessoa que se apaixona pelo criminoso também não se conforma com as convenções sociais, mas lhe falta coragem de transgredir, então ela apoia sua vontade no outro”, detecta Brandão, que ainda destaca “a curiosidade em entender o que está por trás daquela mente criminosa capaz de ações extremas e a procura por emoções intensas, como medo, surpresa e espanto”. Aspectos sociais, fatores psicológicos, emocionais e o próprio ambiente no qual a pessoa se desenvolve podem impactar essa equação. 

Curiosidade

Brandão recorre à etimologia do termo “emoção” para expor melhor seu ponto de vista. Originária do latim “ex movere”, que significa “mover para fora”, a palavra indica que as emoções suscitam o desejo de aproximação ou afastamento. Diante do medo, a tendência da maioria das pessoas seria o afastamento, mas, em certas circunstâncias, ocorreria o efeito reverso, no que a psiquiatria chama de “atitude contrafóbica”, como quem, para superar o temor pela altura, pula de paraquedas. 

Na opinião de Brandão, esse mecanismo estaria “parcialmente envolvido nos relacionamentos com criminosos”, em que a ambivalência do medo provoca, ao mesmo tempo, tensão e curiosidade. Um ramo das ciências psicológicas entende que a mente humana opera por um princípio chamado de “viés de negatividade”, segundo o qual haveria “um interesse natural pelos aspectos mais sombrios da nossa existência”. 

Essa inclinação ao mórbido estaria na comoção diante de tragédias e acidentes, sendo capazes de gerar “mais emoções e memórias”. “A psicopatia e o crime trariam esse viés de negatividade exacerbado, e falar de comportamento humano é algo que todo mundo adora”, aponta o psiquiatra. Nesse sentido, ele tenta compreender a profusão de criações midiáticas relacionadas a fatos violentos sob esses dois aspectos: um interesse natural apropriado culturalmente pela indústria do entretenimento. 

Glamourização

Se o que impulsiona a produção de séries e filmes sobre criminosos é uma demanda da sociedade, por outro lado, Brandão não exclui “a responsabilidade da indústria de moldar o interesse e influenciar a maneira como esses crimes são retratados, que pode afetar a opinião pública e até mesmo ampliar o fascínio por esses comportamentos”, salienta. A exposição constante à violência por meio de telejornais, filmes e videogames não deve cair na normalização, muito menos na glamourização, que, em última instância, produziria uma inversão dos valores morais dessa sociedade. 

Coberturas sensacionalistas e adoração a ícones culturais baseados em crimes reais estariam no cerne dessa “visão distorcida”. Um exemplo é o assassinato da socialite Ângela Diniz na década de 1970, que elevou o feminicida Doca Street à categoria de ídolo de uma geração de homens frustrados e violentos, inseridos numa cultura patriarcal e machista, até ser devidamente abordado pelo podcast Praia dos Ossos, quase meio século depois, somente em 2020. 

Brandão sugere um balanço cotidiano entre “entretenimento e responsabilidade social”. “Essa não é uma relação totalmente direta; em alguns casos, a criação desse tipo de conteúdo pode ser um estímulo à atração por criminosos, e o que, para algumas pessoas, desperta o interesse em compreender a mente humana, para outras, será apenas fonte de entretenimento”, arremata o psiquiatra.