Aniversário

Mafalda chega aos 55 anos questionadora e universal como sempre

Criação do cartunista argentino Quino, icônica personagem segue contemporânea e ilustradores comentam sua importância nos dias atuais

Dom, 29/09/19 - 03h00
Mafalda vivia questionando políticos, economistas e adultos | Foto: Divulgação

“Já que amar-nos uns aos outros não dá certo, por que não tentamos amar-nos os outros aos uns?”, indaga, de forma tão característica, essa menina atrevida de apenas 6 anos que odeia sopa e se mete em todos os assuntos possíveis, enfrenta adultos autoritários e aborda, com humor desconcertante, questões supostamente distantes do pensamento de uma criança, como democracia, pobreza, feminismo e autoritarismo. 

Era para ser uma peça de campanha publicitária em 1962, e só. Porém, algo saiu do planejado, e o projeto acabou interrompido – e, mesmo que ninguém soubesse, isso era muito pouco para Mafalda, a personagem mais famosa do cartunista argentino Quino que completa 55 anos neste domingo, atual e incisiva como sempre.

Como as canções dos Beatles, banda que ela ama, a mensagem que sai das páginas dos quadrinhos continua real e palpitante. 
Mas, afinal: como – e por que – uma figura que habitou os jornais argentinos por apenas nove anos, entre 1964 e 1973, tem esse poder de se eternizar por mais de meio século, a despeito de todas as transformações tecnológicas, e fincar seu discurso na mente de diferentes gerações? Para o ilustrador argentino Costhanzo August, Mafalda é extremamente contemporânea por apontar temas que têm a ver com a condição humana.

“Os conflitos são os mesmos, o racismo, a fome e as guerras continuam, lamentavelmente. Mafalda se angustiava e protestava contra isso”, diz o conterrâneo de Quino. 

Aliás, é impossível falar da personagem sem dizer que, quando a palavra “protesto” é mencionada, Mafalda carrega muito do que é o povo do país hermano. “Isso é muito argentino”, comenta Costhanzo. “Aqui, ainda se mantém latente essa energia que tinha Mafalda de questionar tudo, de reagir de uma maneira diferente diante dos conflitos”, completa o cartunista.

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Ao tratar sobre temas comuns a qualquer país ou região, Quino dá a sua personagem um contorno universal. E ele o faz com humor – não aquele raso, mas um tipo cômico que é lúdico e traz reflexão sobre ética, cidadania, amor e liberdade. Não à toa, os quadrinhos e os livros de Mafalda foram traduzidos para 30 idiomas.

Em 2014, por ocasião dos 50 anos de sua criação, Quino disse, talvez numa humilde tentativa de minimizar a importância de Mafalda, em uma entrevista exclusiva à Agência Efe: “Sou como um carpinteiro que fabrica um móvel, e Mafalda é um móvel que fez sucesso, lindo, mas para mim continua sendo um móvel”

A verdade inevitável é que Quino estará sempre de mãos dadas com Mafalda. “Viajo sempre para vê-lo, e Mafalda está sempre presente não só porque trabalho com ele, mas também porque ela é uma personagem que se converteu em mais uma integrante da família”, conta Julieta Colombo, sobrinha, agente e representante do cartunista na América Latina desde 2003. 

Influência

Sendo um trabalho de escala tão global, é compreensível que ele deixe rastros fora de seu país natal e influencie produções além da Argentina. Seja pela estética, seja pelo conteúdo discursivo, Quino e sua Mafalda inspiraram artistas brasileiros, e isso pode ser percebido “pela presença de personagens femininas de personalidade forte e questionadora, como a Lif do 'Navio Dragão', criada por Rebeca Prado, ou por uma abordagem política e social mais direta, como o Armandinho, de Alexandre Beck”, conforme comenta a quadrinista, ilustradora e professora da Casa dos Quadrinhos em Belo Horizonte, Carol Cunha.

O que fica, então, do discurso de uma garotinha pop que rompe a barreira do tempo e continua contribuindo com pensamento crítico e questionador, inclusive em memes, essas peças que dizem tanto sobre nossos dias. “São tantas lições, mas acho que uma das mais importantes é a de que não podemos ficar indiferentes diante das injustiças da sociedade e que cada um de nós pode fazer algo para melhorar nosso mundo”, emenda a professora.

Obra de Quino vai além do sucesso de Mafalda

Personagem que permanece ao lado de nomes como Maradona, Evita e Jorge Luis Borges na estante da memória afetiva e cultural da Argentina, Joaquín Salvador Lavado Tejón, mundialmente consagrado como Quino, apelido que recebeu de sua família ainda na infância, nasceu em Mendoza, em julho de 1932. 

Apaixonado por quadrinhos desde pequeno, Quino já publicava suas primeiras tirinhas de humor nos diários de Buenos Aires em 1954, dez anos antes de Mafalda ganhar vida. Provocativo, sagaz e extremamente inteligente, ele soube transpor críticas sociais contundentes nos quadrinhos e deu vida a outros personagens brilhantes – e anônimos – em 65 anos de carreira.

Ao longo de sua vida, o cartunista publicou vários livros, expôs em galerias em todo o mundo e recebeu prêmios, entre eles o II Prêmio Ibero-Americano de Humor Gráfico Quevedo, em 2000. Hoje, aos 87 anos, vive na cidade natal. (BM)

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