Entrevista

Da marionete ao experimental

Janie Geiser explica sua trajetória, que ganhou uma retrospectiva no 7º Olhar de Cinema de Curitiba

Dom, 17/06/18 - 03h36

Janie Geiser

Artista visual e cineasta

Nascida em Atlanta, a norte-americana começou com um trabalho bastante peculiar no teatro, com marionetes para adultos. No início dos anos 90, quando levou essa experiência para o cinema, Janie passou a criar uma obra singular, que mistura a linguagem da videoarte com elementos do teatro de bonecos e referências do cinema clássico. Abaixo, ela explica um pouco dessa trajetória, que ganhou uma retrospectiva no 7º Olhar de Cinema de Curitiba.

Você se formou em artes visuais na Universidade de Georgia e trabalhou por muito tempo com marionetes. Como se enveredou por essa área e como ela dialoga com seu cinema?

Na verdade, ainda trabalho. Eu comecei como artista visual no Sul dos EUA, em Atlanta, no início dos anos 80, fazendo objetos e figuras motorizados. Eram parecidos com marionetes, mas não exatamente, porque eu não conhecia a área. Mas havia um teatro de marionetes meio famoso na cidade. Fui ver algumas das performances deles e vi que tinha uma relação com o que eu vinha fazendo. Continuei a frequentar as apresentações e consegui um emprego no museu deles, ajudando a organizar o acervo, as roupas dos bonecos, estudava como elas eram feitas. Até que o diretor de lá me disse: “Você devia fazer um show de marionetes”. E eu era jovem o bastante para dizer “sim”. Já vinha trabalhando com design de figurino para dançarinos, e os bonecos que eles usavam em suas apresentações, então performances já faziam parte do meu trabalho, ainda que como pano de fundo. Conhecia artistas, músicos e as pessoas necessárias para fazer meu show. E um lugar onde podia trabalhar sem pagar aluguel. Fiz uma pequena apresentação de 12 minutos e fiquei muito instigada pelo formato e o que você podia fazer com ele, em termos de movimento e som.

E como isso te levou ao cinema?

De certa maneira, isso já era muito parecido com o trabalho em cinema. De fato, eu fiquei interessada em trabalhar com filme já naquela época, mas ainda tinha muito a aprender. Até que comecei a inserir pequenos trechos audiovisuais nos espetáculos, em 1989, e isso me levou naturalmente a fazer filmes. Para mim, as duas linguagens oferecem um equilíbrio. Com as performances, eu tenho que reunir e pagar um monte de gente, com ensaios, cronogramas, parecido com a realização de um longa. E com meus curtas, é um trabalho mais solitário, que remete a minhas raízes como artista visual. Mas está tudo ligado. No cinema, eu trabalho com composição, ritmo, e eu aprendi isso tudo no teatro.

Apesar de seu trabalho ser muito experimental, ele dialoga muito com o cinema clássico, com referência aos filmes noir e ao cinema mudo. Como você tenta reutilizar e reimaginar esses cânones em seus curtas?

Eu não cresci numa família muito culta. Não íamos ver exposições nem líamos poesia. A arte a que tive acesso foi filme e TV. E eles sempre me influenciaram muito. Mesmo quando eu ainda não fazia cinema, já afetavam minhas artes visuais. São parte da minha educação cultural, mesmo que eu não me desse conta. Eu adoro partir dessa história, do mistério e das sombras do filme noir, dos tipos de narrativa e da reflexão sobre a condição humana. Mas o cinema experimental também é uma grande influência. 

Hoje em dia, busca-se muito identificar como obras de arte dialogam com temas como feminismo, machismo, racismo, política. Você gosta quando o público tenta enxergar isso em seus filmes?

Definitivamente, sou uma mulher, trago esse ponto de vista e, muitas vezes, estou falando politicamente sobre ser mulher. Em “Terraço 49”, há um desenho de uma mulher, e um caminhão vem em direção a ela rapidamente, descendo um morro. Isso veio de quando eu estava assistindo ao desenho do “Quarteto Fantástico” com meu filho caçula e, de repente, me dei conta de quão passivo era o poder da mulher. Era desaparecer. Isso se tornou uma grande reflexão sobre como mulheres são frequentemente retratadas assim, e eu quis trabalhar com esse conceito da mulher constantemente desaparecendo. E os homens que criam essas histórias nem pensam nisso. Eles não querem fazer a mulher desaparecer, mas acham que é um poder legal. 

Qual você acha que é a percepção mais equivocada que as pessoas têm de seu trabalho?

Algumas pessoas falam “oh, é tão parecido com um sonho”. E, para mim, há um aspecto que pode remeter a isso, mas parece uma fantasia ligeira quando dizem isso. É uma palavra que não me agrada. E outra coisa: mesmo que os filmes sejam feitos quadro a quadro, não gosto quando eles são chamados apenas de animação. Porque existe uma certa estética associada ao campo da animação, muito parecida com o que se pensa sobre marionetes: fantástica, infantil. Por isso, tento evitar essas palavras. Eu tentei por muito tempo evitar a palavra “marionete”, mas aceitei que não existe outro termo. 

Quais são as principais influências e referências da sua obra?

Em termos de técnica de animação, eu citaria o tcheco Jan Svankmajer. Ou os irmãos Quay. Eu gosto de como o ritmo do Jan pode ser bem agitado, variável. Ele não tenta ser realista, naquela lógica de uma coisa levar à outra. E, quando eu era criança, gostava muito de faroestes. E dos filmes de guerra dos anos 50. Não que eles referenciem diretamente esses clássicos, mas meus trabalhos mais recentes têm muitas imagens de guerra. Já da filmografia contemporânea, eu adoro Lucrecia Martel. Vi “Zama” na semana passada e quero ver de novo. Agora, em termos de artes visuais, Joseph Cornell, com certeza. Frida Kahlo. Yoko Ono. Os artistas da Fluxus. Um dos meus artistas favoritos é Gordon Matta Clark, ainda que não tenha muito a ver com meu trabalho. Ele estudou arquitetura, mas operava ao contrário: encontrava prédios velhos e fazia buracos no meio para o sol entrar. 

Como é ser um artista experimental nos EUA hoje?

Nos EUA, de certa forma, as artes experimentais vivem meio isoladas. Elas não são tão apreciadas pela cultura como um todo. Com o Trump, ficou bem claro que uma parte do país é anti-intelectuais e anti o que eles chamam de “elite” – leia-se, tudo que não são “eles”. Eu tenho uma família com pessoas em todos os cantos do espectro, então não tenho animosidade contra pessoas que não se importam com arte. Porque não têm que se importar. Esporte, por exemplo, não é importante para mim – mas é para um monte de gente. E nós devíamos ter o direito de sermos diferentes. A maior parte do trabalho experimental é feita nas grandes cidades, que são mais progressistas e têm espaços de exibição. Mas em Los Angeles, onde eu vivo hoje, por ser tão dominada pela indústria cinematográfica, não há muito dinheiro para o cinema experimental. Existe, no entanto, uma rede de cidades: Nova York, Chicago, São Francisco, Portland, até Atlanta, onde subsistem espaços para nosso trabalho.

A eleição de Trump afetou seu trabalho?

Não diretamente. Mas nesta performance em que estou trabalhando agora com os dois compositores, parte da temática, ainda que tenhamos começado o projeto anos atrás, envolve as pessoas responsáveis pela manutenção subterrânea das ogivas nucleares nos bunkers ao longo de toda a Costa Oeste. Eles vivem lá embaixo, em ciclos de 24 horas, garantindo que está tudo funcionando corretamente. Parte desse trabalho se refere a isso, com as marionetes manuseando os controles. Anos atrás, ninguém nem pensava nisso. Mas, de repente, o Trump tem os códigos e pode começar uma guerra nuclear a qualquer minuto. Então, voltou a estar em voga e ganhou uma atualidade maior, infelizmente. 

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) O repórter viajou a convite do 7º Olhar de Cinema

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