Artesanal

Produtores de Minas Gerais aderem ao chocolate 'bean to bar'

Com controle da amêndoa do cacau à barra, eles reforçam movimento que valoriza o doce nacional

Dom, 27/10/19 - 03h00

Não tem chaminé nem tanques gigantes: é entre casas antigas no bairro Saudade, região Leste de BH, que se localiza uma das primeiras fábricas de chocolate de Minas, a Kalãpa, fundada há pouco mais de um ano. No vizinho Santa Efigênia, três anos mais antiga e um pouco maior, está a Java. A Ambar, que será no Jardim Canadá, nem sequer abriu as portas ainda. De maneira quase imperceptível a olhos desatentos, empreendedores de BH reforçam, assim, o crescimento da indústria do chocolate artesanal nacional, em um movimento parecido ao que aconteceu com o café.

No caso do doce, estão atrelados ao “bean to bar”, expressão que designa a produção de chocolate mais cuidadosa partindo da amêndoa de cacau (como convencionou-se chamar a semente) até o item finalizado. Um exemplo prático é o de Luiza Santiago, da Kalãpa. Os grãos de cacau que ela usa vêm de um assentamento na Bahia, e Luiza conhece cada um dos lugares, sabe se o cacauicultor está na área mais aberta ou fechada da Mata Atlântica. “Essas nuances fazem diferenças no chocolate, a forma como o cacauicultor fermenta o grão, o lugar de onde ele vem, se choveu mais ou menos”, ensina.

Na sua microfábrica, as amêndoas cruas são torradas, quebradas, descascadas (em uma máquina que ela mesma construiu, já que não encontrava algo que atendia suas necessidade), processadas e derretidas. Ao fim, tornam-se uma das cinco opções de barras, a exemplo da Maresia de Limão, 70% cacau com limão-siciliano e flor de sal, ou o Cremístiko, creme de chocolate com gergelim (tudo sem lactose, orgânico e vegano). Ao todo, são cinco dias para produzir cada “nanolote”, que será vendido via redes sociais ou para cafeterias da cidade, como Intelligenza e Academia do Café. 

Varejo

Com uma presença mais consolidada – tem itens à venda até no Verdemar –, a Java, por sua vez, produz barras e bombons, todos sem glúten nem lactose e veganos. “Nosso propósito é oferecer chocolates de alta qualidade para todo mundo, mas principalmente para pessoas que têm restrições alimentares”, explica Aline Palmira, que fundou o local ao lado de André Chaves. A motivação de Aline para esse nicho veio ao descobrir ser intolerante ao glúten.

“Sempre gostei de chocolate e tinha dificuldade de encontrar produtos que atendessem minhas restrições”, rememora. “Além disso, ficava me questionando: por que o Brasil produz tanto cacau e compra chocolate belga? Por que eles têm que ter leite? Fui seguindo a trilha e descobri como fazer chocolate valorizando o que é nosso”, diz. 

O cacau usado na Java vem primordialmente da Amazônia, mas, recentemente, Aline localizou um produtor na região do Rio Doce, em Minas. “É uma fazenda pequena, tanto que só usamos esse cacau para o tablete Mineirinho (63%). Ele tem notas de sabor diferentes do cacau amazônico: ao paladar, é mais ácido no início e evolui para um caramelo”, diz. 

Parcerias

Tanto Luiza quanto Aline trabalham para que seus produtos sejam usados em preparos de confeitaria. O Java, por exemplo, é parceiro da padaria Seleve. Já o Kalãpa é base do chocolate quente servido no Café Magrí.

Esse tipo de parceria também é realidade para a Ambar, de Helena Avelar, Renata Penido e Izabela Garcia. Mesmo a fábrica tendo previsão para inaugurar em novembro, o chocolate delas já aparece nos preparos do Circuito É Doce – projeto que reúne estabelecimentos, como a Doce que Seja Doce e a Doce Leva, que apresentam criações inéditas disponíveis apenas para quem adquiriu um passaporte (que esteve à venda no início deste mês). 

“Nosso foco é trabalhar em conjunto com confeitarias, desenvolver chocolates para empresa”, conta Renata. Ela explica que os primeiros chocolates produzidos vêm de cacau do Vale Potumuju, na Bahia (70% vegano, 55% com adição de leite, e 42% com leite e cumaru). “Mas a ideia é explorar origens. Então, a cada momento, a gente vai lançar chocolates de um lugar diferente”, explica. “Meu propósito (com a Ambar) é contribuir para o mundo, valorizar o trabalhador, buscar frutos que contribuam para o não desmatamento”, reflete Helena.

Potencialidades e desafios: especialista elogia produção 

Responsável pelo projeto Chocolate Brasileiro, a pesquisadora gaúcha Juliana Ustra esteve em Minas algumas vezes neste semestre e cita fatores comuns às marcas do movimento bean to bar local. “São jovens no mercado, mas já vêm com profissionalismo. Vê-se uma valorização do terroir, das pessoas envolvidas na cadeia, bem como um respeito incrível à natureza e à saúde dos clientes”, avalia.

Juliana destaca os casos de inovação focados na brasilidade, com o uso de ingredientes regionais. “Outra característica interessante é o apelo à saudabilidade de algumas formulações, buscando a redução de ingredientes alergênicos, de açúcares, a eliminação de leite e a inserção de alternativas bem vistas pela nutrição”, pontua. 

Mas ela também lembra os desafios para o crescimento dessas marcas. “São chocolates com apresentações distintas aos de supermercados, porque são preparados com amêndoas de cacau selecionadas desde a fazenda, foco na qualidade e no resultado sensorial. E, para que estejam neste padrão, acabam sendo mais caras (em média, uma barra bean to bar custa três vezes mais que a convencional)”. Não só. “(As barras) São veículos de sabores novos ao paladar brasileiro, pois têm doçura levemente reduzida, não usam aromatizantes artificiais e trazem o verdadeiro sabor do cacau. Uma delícia, mas que ainda precisa ser assimilada pelo gosto do brasileiro”, argumenta. (AG)

Iniciativas afins se espraiam também pelo interior de Minas

O nicho dos chocolates artesanais mineiros não se restringe à capital. Que o diga a Gabelle, de Pará de Minas. “Já trabalhava no setor alimentício, mas quis mudar. Como sempre gostei de chocolate, pesquisei mais sobre o cacau (fez um curso em Ilhéus) e, em março, abri a marca”, diz Gabriela Elias, que de pronto investiu no chocolate sem leite, “pelo grande número de alérgicos”. Seus produtos ou não levam açúcar ou usam o demerara orgânico. 

Em Sete Lagoas, a Odle, de Tânia e Evandro Odlevak, nasceu em função do filho do casal, que insere-se no espectro autista. “Ao começar a comer doces, ele se encantou por chocolates, mas vimos que todos trazem muitos aditivos químicos. E veio a vontade de fazer um chocolate de verdade, mas de início sem intenção de vender”, conta Tânia. 

Ela frisa que até hoje não se sabe tudo sobre o autismo. “Por isso, priorizamos o natural, o orgânico, os produtos de origem”. Além das barras, a Odle traz produtos como pipocas com chocolate e linhas pontuais. Um diferencial é preservar o terroir da amêndoa, ou seja, as características de cultivo. “Temos cinco fornecedores e cada barra tem uma única origem, para a pessoa sentir o que o cultivo traz antes da nossa alquimia. Quando não há químicos, as características são mantidas. Esta é uma das riquezas do bean to bar”, defende.

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