Drama

Sete em cada dez ‘escravizados’ rejeitaram deixar a condição

Fiscais encontraram 849 pessoas nessa situação, mas só 266 aceitaram o resgate

Seg, 01/04/19 - 03h00
Para manter trabalho, pessoas aceitam alojamentos precários, com cozinhas e banheiros improvisados e excesso de pessoas | Foto: Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere)/divulgação

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Trabalho braçal, árduo, inseguro, sem hora para terminar e muito menos garantia de pagamento. Ao findar do dia, um acampamento improvisado, sujo, muitas vezes sem banheiro, com dezenas de colchões amontoados em filas e uma alimentação precária. Essas condições, comuns nas situações chamadas de “trabalho análogo à escravidão”, obviamente não são desejadas por ninguém. Mas sete em cada dez trabalhadores encontrados por fiscais em circunstâncias parecidas em Minas Gerais, no ano passado, optaram por permanecer no serviço degradante em vez de passar a compor a massa de desempregados no país. É o ápice da desesperança evidenciado por essas 583 pessoas, que não viram alternativa a não ser continuar vivendo como “escravos”.

Segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho, ligada ao Ministério da Economia, 849 pessoas foram encontradas pelos auditores da pasta em condições análogas à escravidão em Minas Gerais no ano passado. Dessas, apenas 266 foram resgatadas. O restante continuou trabalhando no mesmo local.

Mesmo entre aqueles que aceitam o resgate, é muito comum a reincidência. “Não é raro encontrarmos pessoas que foram resgatadas mais de uma vez. É uma questão de sobrevivência. Esses trabalhadores normalmente têm baixa qualificação profissional e dificuldade de conseguir serviço. Com a alta do desemprego, eles ficam mais à margem e, consequentemente, ainda mais vulneráveis a esse tipo de situação”, explica o coordenador da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG, o juiz federal Carlos Henrique Borlido Haddad.

Essa história, um belo-horizontino de 34 anos, que vai ter o nome preservado pela reportagem, conhece muito bem. “Eu estava precisando de dinheiro, com um filho pequeno em casa, então aceitei ir para uma cidade no Sul para ganhar R$ 1.500 por mês. Fiquei lá quatro meses e não vi salário”, conta. “Tinha gente que trabalhava lá há mais de um ano nessa situação e não ia embora. Eles ainda acreditavam que iam receber, e enchiam a cara de cachaça para conseguir esquecer os problemas. Situação terrível igual àquela eu nunca vi, não”, lembra.

Ele e outros 40 trabalhadores dividiam uma moradia precária, onde se deitavam para tentar descansar depois de mais de 12 horas de trabalho. Logo nos primeiros dias, notou que tinha algo errado. “Nada de dinheiro, nada de ninguém falar nada. Eu nem cheguei a conhecer meu patrão. Aquilo não era trabalho de confiança. Mas percebi calado, porque eu não tinha saída. Sem dinheiro, não dava para voltar para casa”, conta.

Famílias com fome. Sem liberdade para voltar para casa, os trabalhadores recorreram à polícia. “Nosso grupo fez 18 denúncias anônimas. A barriga dos parentes começou a apertar de fome, porque nada de mandar dinheiro para casa. Por isso, tivemos que dar o grito. Até que, um dia, ouviram nossos pedidos, e uns fiscais bateram lá no acampamento”, conta. A vítima não sabe dizer quantos trabalhadores aceitaram ser resgatados. Mas quem quis voltar para casa recebeu o valor devido e foi encaminhado para a cidade de origem.

Retorno dos fiscais depende de denúncia

Quando os fiscais descobrem empresas adeptas do trabalho escravo, eles forçam a rescisão do contrato das vítimas. Mas nada impede que um novo pacto seja firmado entre empregadores e empregados minutos após a saída da fiscalização.

“Nós exigimos que o vínculo seja cortado naquele momento. Mas quem quiser continuar trabalhando fica. Esperamos que seja com condições mais dignas, mas, para saber, só se fizermos outra fiscalização”, explica o chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério da Economia, Maurício Fagundes Krept. Essa vistoria vai depender de novas denúncias ou de uma desconfiança de irregularidade por fiscais da região.

O empregador que é descoberto utilizando mão de obra escrava está sujeito a multa. Para cada infração, os valores variam de R$ 400 a R$ 4.000. Caso o Ministério Público Federal apresente denúncia, pode ser aberta uma ação penal. Nesse caso, a pena pode variar de dois a oito anos para pessoas que impõem condições degradantes de trabalho.

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