Intervenção

Artista propõe café da manhã no meio da rua para interação entre as pessoas

Ação criada pela professora da Escola Guignard Thereza Portes completa dez anos e é replicada por outros artistas

Ter, 19/03/19 - 03h00
Thereza Portes tem levado sua ação para promover a interação entre as pessoas por meio de um café em diversos lugares | Foto: Daniela Goulart / Divulgação

A rua Padre Belchior, no centro de Belo Horizonte, conforme relata a artista Thereza Portes, já foi eleita a mais feia da cidade. Pois foi justamente lá, em 2010, que a pintora e professora da Escola Guignard colocou sua primeira mesa de café sobre a calçada, em meio ao barulho do trânsito incessante, da fumaça das descargas de ônibus e caminhões. Acostumados à correria do dia a dia, os transeuntes que por ali passavam foram surpreendidos pela iniciativa gratuita, e alguns até reagiram de maneira ríspida.

“Teve um homem, num tom agressivo, que, vendo aquilo, veio perguntar para mim: ‘Por que você está fazendo isso? Tem que pagar?’. Eu respondi: ‘Não, não tem’. Aí ele parou, olhou para mim e falou: ‘Isso aqui é para pensar, né?’. Ele ficou, tomou café, comeu e depois foi embora. E deu para perceber que ele saiu de lá mexido com essa história”, relata Thereza, que celebra em 2020 dez anos dessa intervenção.


Sair do ambiente do ateliê e se lançar em um contato face a face com o público foi o que motivou a artista a criar esse trabalho. E ele, a partir dessa intenção de estimular os diálogos, insere-se em uma tendência mais ampla, que abarca também criações de outras áreas, como o teatro. Exemplos de espetáculos que tomam o estímulo à conversa como aspecto estruturante são “Jornada”, do grupo Planos Incríveis, “Glória”, do Coletivo Toda Deseo, e “Ópera Bruta”, do Coletivo Bacurinhas, que estiveram em cartaz na capital no começo deste ano, dentro do Verão Arte Contemporânea (VAC).


“Eu cheguei a um ponto que só a pintura não me satisfazia tanto e queria ir além. Assim, minha pesquisa começou a enveredar para essa questão do contato direto com o público, principalmente no espaço urbano, tendo essa conversa direta com a rua e com a vida”, diz Thereza.


Ela recorda que a ideia da mesa surgiu exatamente quando o Instituto Undió (organização não governamental coordenada por ela e centrada em ações de arte-educação) conseguiu uma sede própria, na rua Padre Belchior. A casa havia sido residência dos seus avós e encontrava-se em estado de abandono, exigindo uma reforma, que foi sendo feita aos poucos. No contato diário com o entorno e com os adolescentes e jovens que passaram a frequentar o espaço e faziam parte dos programas da ONG, ela teve a ideia de fazer um café coletivo, pedindo xícaras aos vizinhos. Mesmo desconfiados, eles compareceram.


“Cada um passou a chegar e começava a contar uma história. Mais de uma pessoa doou uma xícara, que, algumas vezes, havia sido da mãe. Os objetos vinham carregados de memórias. Foi a partir disso que eu também tive a ideia de pegar uma grande toalha e pedir para as pessoas bordarem, porque me interessava uma forma de fixar aqueles encontros”, conta Thereza.


De lá para cá, o trabalho ganhou itinerância e já foi realizado em outros lugares da cidade, como em frente ao Centro Cultural da UFMG (av. Santos Dumont), no Parque Municipal, em municípios do interior e de outros Estados, como Porto Alegre (RS), onde a artista levou sua ação à Vila Lupicínio Rodrigues. No ano passado, sua mesa também foi posta na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), e, recentemente, a artista levou seu conjunto de cerca de 600 xícaras e coou 30 litros de café durante a homenagem à ativista Marielle Franco (1979-2018) no dia 13, embaixo do viaduto Santa Tereza.

No último sábado, o trabalho, pela primeira vez, foi para a galeria, sendo montado na abertura da mostra coletiva que celebra os 75 anos da Escola Guignard, na AM Galeria, com curadoria de Manu Grossi. “Foi legal levar a mesa para esse espaço como uma obra de arte. Mas acho que a rua é sempre o melhor lugar para ela, porque ali eu posso lidar com a surpresa e com o compartilhamento”, conclui Thereza.

Construção de cenas

Nas peças “Jornada” e “Glória”, a estratégia de integrar o público acontece no fim da peça, como é o caso do primeiro, enquanto o segundo puxa o bate-papo logo no início. “Quando abrimos espaço para perguntas, as pessoas entram no jogo, enquanto outras são mais tomadas pela indagação do que está acontecendo”, diz David Maurity, do Coletivo Toda Deseo.


Vinícius Souza, diretor de “Jornada”, relata que a última cena, na qual o espectador é convidado a participar, não tem formato definido. “Houve um dia em que a conversa acabou parecendo um debate, em outro o diálogo foi mais informal, e houve, inclusive, quem se entendeu como personagem, jogando com isso”, afirma Souza.

---

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo mineiro, profissional e de qualidade. Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar.

Siga O TEMPO no Facebook, no Twitter e no Instagram. Ajude a aumentar a nossa comunidade.