Representatividade

As reinações de uma visionária

Com 40 anos de existência, Mazza Edições é precursora em publicações sobre negritude

Sex, 15/10/21 - 00h02
“Eu quis abrir uma editora que trabalhasse a questão negra”, diz Mazza | Foto: Fred Magno

Quando os filhos da patroa não queriam mais determinado livro, era nas mãos da filha da lavadeira que a doação acabava chegando. Assim a pequena Maria Mazarello, moradora de Ponte Nova, aprendeu a ler, graças ao trabalho árduo da mãe, que ficou viúva com 9 filhos para cuidar. Uma das primeiras obras que a menina pegou para ler foi “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato”, e o resultado dessa aventura teria desdobramentos ao longo de sua vida. Mais de 70 anos depois, quem entende do negócio do livro sabe que aquela pirralha curiosa se transformaria numa mulher visionária.

O mercado editorial dos tempos atuais está com holofotes apontados para autores negros e que falam sobre negritude, algo que Mazza Rodrigues – o nome Maria ficou no documento –, hoje com 80 anos, já faz há quatro décadas. Foi em 1981 que ela fundou a Mazza Edições, uma casa editorial belo-horizontina que se dedica a publicar obras sobre a temática afro-brasileira.

Eram tempos em que autoras negras não eram celebradas, muito menos frequentavam espaços da intelectualidade, tal qual ocorre atualmente com nomes como Djamila Ribeiro, Chimamanda Ngozi Adichie ou Conceição Evaristo – esta, aliás, publicada primeiramente por Mazza.

A ideia de criar a editora surgiu quando Mazza percebeu que, mesmo após 20 anos de trabalho no segmento, nunca havia publicado um livro de autor negro. A constatação só veio quando ela visitou editoras em vários países na Europa, durante o mestrado que fazia na França, fruto de uma bolsa de estudante. Ao fim do período, ganhou outra bolsa, desta vez para o doutorado, mas preferiu retornar ao Brasil. “Eu quis abrir uma editora que trabalhasse a questão negra”, relembra.

O universo infantojuvenil também atraía as ambições de Mazza. “Isso foi entrando na minha cabeça”, rememora. Foi algo tão intenso que a transportou àquela cena de quando lia o clássico de Monteiro Lobato. Ela percebeu, então, que havia algo naquela história que a incomodava. “Eram as ilustrações”, diz. “Os desenhos mostravam o negro estereotipado, numa posição subalterna. Eu queria personagens negros com meninos bonitos, histórias de princípes, ilustrações maravilhosas. Eu queria que os meninos tivessem o que eu não tive”, completa ela.

E lá veio Mazza trabalhar por uma representatividade afro-brasileira em obras importantes para a formação de crianças negras – e não somente –, como a Rapunzel preta do livro “Rapunzel e o Quibungo”, de Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho. Ou na história de “Chico Juba”, narrativa de Gustavo Gaivota (texto) e Rubem Filho (ilustrações), que conta como o menino inventor de xampus descobre a importância de aceitar seu cabelo ser do jeito que é.

A versatilidade de Mazza atende os anseios infantojuvenis e adultos de maneira simultânea. Dessa forma, ao longo dos anos ela vem publicando importantes pessoas negras da cultura e intelectualidade brasileira, como Edimilson de Almeida Pereira, Nilma Lino Gomes e Leda Maria Martins, entre tantos outros. Como a representação racial nos livros brasileiros ainda não contempla de forma efetiva a população negra, que é maioria no país, Mazza prossegue na labuta para poder recontar a história do negro em toda a sua complexidade, fugindo de chavões e senso comum. “Nos livros infantis é tudo uma branquitude. Tem que mostrar que nossos ancestrais foram quem ajudou a construir este país. Isso precisa ser contado. Temos um papel que nos é negado até hoje”, protesta.

 

Para Madu Costa, uma das autoras publicadas pela editora, o pioneirismo de Mazza é um “divisor de águas”. “Ela estava em Paris, onde o mercado é pulsante, olha para o Brasil e percebe essa lacuna. Sempre foi atrevida e meteu o pé na porta”, avalia a curadora da edição mais recente do Festival Literário Internacional de Belo Horizonte (FLI-BH).

Se por um lado o reconhecimento dos pares chegou, a reversão disso em apoio governamental não ocorre na mesma intensidade – vale lembrar que Minas Gerais é o segundo Estado com maior população negra no Brasil, ficando atrás somente da Bahia. 

Os bons ventos de antes não sopram mais com o mesmo vigor. A Lei 10.639/2003, promulgada pelo então presidente Lula, determinou o ensino da literatura afro-brasileira nas escolas, o que injetou ânimo no mercado. “Mas aí os editores da branquitude começaram a perceber esse mercado e criaram selos negros”, explica Mazza.

O apetite voraz das grandes editoras abocanhou fatias das pequenas. Nas contas de Mazza, há cerca de dois anos o segmento vem apresentando queda nas vendas. “Estamos num retrocesso, várias editoras estão fechando. Nós precisamos de políticas públicas”, reclama.

Ela acredita que a fase ruim para o setor infantojuvenil deva durar uns anos ainda. Enquanto isso, vai continuar incansável na busca por espaços. E, quando possível, vai pescar mandi e piau no rio das Velhas, outra de suas paixões.

 

TRÊS LIVROS DA MAZZA EDIÇÕES

Assim se benze em Minas Gerais, de Edimilson de Almeida Pereira e Núbia Pereira de Magalhães Gomes. A publicação aborda a complexidade dos rituais de cura.

https://www.mazzaedicoes.com.br/obra/assim-se-benze-em-minas-gerais/

 

Reinado e poder no Sul das Minas Gerais, de Maria José de Souza (Tita). Registro histórico sobre a devoção em torno dos santos negros na região Sul do estado.

https://www.mazzaedicoes.com.br/obra/reinado-e-poder-no-sul-das-minas-gerais/

 

Cinderela e Chico Rei, de Ronaldo Simões e Maria Cristina Agostinho. Narra a história que envolve o ex-escravo que acabou ficando rico e Abioye, filha de reis africanos que vivia escravizada por uma família em Vila Rica.

https://www.mazzaedicoes.com.br/obra/cinderela-e-chico-rei/

 

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