Música

Em vez da fossa, o hit: como o pop se apropria de separações midiáticas

Shakira e Miley Cyrus são exemplos de artistas que transformaram sofrimento em sucesso

Por Alex Bessas
Publicado em 13 de fevereiro de 2023 | 06:30
 
 
Shakira lançou nova música na última semana com indiretas contra ex-marido Foto: YouTube/Bizarrap/Reprodução

A esta altura, é difícil saber o que é verdade e o que é apenas especulação na tão comentada separação de Shakira e Gerard Piqué. Indiscutível mesmo é que a artista colombiana soube fazer do limão uma limonada – ou, em uma analogia certeira, soube faturar com um pote de geleia pela metade. Sem muitas reservas, ela tratou de abordar o conturbado término em novas músicas, na quais expia a própria dor, mas sem deixar de expor, para uma audiência global, os podres do ex-jogador de futebol espanhol, com quem foi casada por 11 anos. 

Rota parecida percorreu Miley Cyrus, que, mais discreta, também foi bem-sucedida ao surfar em um hit que tematiza a tão popular “dor de corno”, mas sem cair na fossa e sem deixar de falar dos vacilos do ex-amor – supostamente, o ator Liam Hemsworth, com quem ela foi casada por pouco menos de um ano e cujo rompimento parece ter inspirado a nova fase. 

Para além do sucesso instantâneo, é ingrediente comum dessas histórias o fato de as separações públicas, que deram o que falar, terem sido seguidas de lançamentos que abordam temas como a traição e as desilusões amorosas – sempre com um quê de vingança, seja detonando os ex-companheiros ou dando sinais, ainda que ambíguos, de superação.  

E, embora não seja precisamente uma novidade que a dor de cotovelo e o ressentimento sejam usados como inspiração para a produção artística, há algo de especialmente instigante nesses dois casos. Afinal, sobretudo no caso de Shakira, ao invés de um recolhimento para curtir a fossa, algo tão comum nessas histórias, o que se viu foi uma longa lavação pública de roupa suja – que parece ter servido para esquentar comercialmente os lançamentos musicais. 

“Para analisar esse fenômeno, nosso olhar precisa ir além da questão musical”, sugere o crítico Rodrigo James. “Essa nova abordagem tem tudo a ver com o momento que vivemos, em que não há mais muita fronteira entre o público e o privado, de forma que fica fácil saber de quem se está falando. A indireta fica mais direta, e a história, mais pessoalizada, embora continue fazendo sentido mesmo para quem, por alguma razão, não esteja a par dos acontecimentos”, observa.  

Além disso, ele cita que o comportamento está associado a mudanças de perspectiva sobre as relações. “Se, antes, a mensagem normalmente era de um sofrer sem fim, como nas doloridas canções de fossa de Maysa (1936-1977), hoje, a ideia central é a da superação quase aliviada da pessoa, que diz se ver saindo de um relacionamento pintado como ‘tóxico’. É exatamente esse o caso dos novos hits de Shakira e Miley, cujas músicas, apesar do tema, não são introspectivas, mas vibrantes. Ou seja, esses novos elementos e debates mudam a maneira como o mesmo fenômeno – a desilusão – vai ser abordado”, comenta. 

No bojo dessas transformações, James lembra que era mais comum, no passado, uma visão romantizada dos relacionamentos, que, para se provarem verdadeiros, precisavam sobreviver a todas as adversidades. “Agora, há mais pragmatismo”, diz, citando o conceito de relações líquidas, criado pelo filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que, grosso modo, diz respeito ao fenômeno social em que as relações afetivas, econômicas e de produção são mais fugazes e maleáveis. Nesse contexto, é comum que a duração das interações entre pessoas não dure mais do que lhes pareça conveniente. 

Tema recorrente 

Em certa medida, a leitura de Rodrigo James é compartilhada pelo psicólogo e músico Ildeu Oliveira. “Do ponto de vista do artista, precisamos sempre de um gatilho para a criação, seja um encantamento ou um desencanto. E muita coisa pode servir para esse despertar artístico. Pode ser um descontentamento político, a simples contemplação da natureza, as alegrias de um novo amor ou as dores de uma desilusão amorosa”, comenta, salientando que corações partidos são tema corriqueiro na história da música. “Talvez o que exista de mais novo agora é que as gravadoras perceberam o que vende e investem nesse mercado, valendo-se de pautas sociais que estejam em alta e, inclusive, aproveitando-se desses boatos em torno da vida dos artistas”, situa. 

De fato, se o amor é o tema da música, os desamores não ficam muito atrás – e, aliás, para muita gente as canções que tematizam o ressentimento são melhores do que aquelas que focam a fase “lua de mel”. 

Desilusão e vingança, por exemplo, são os temas centrais da música de artistas que, hoje, poderiam ser vistos como entidades ancestrais da “sofrência”, como Lupicínio Rodrigues (1914-1974) e Dalva de Oliveira (1917-1972), e ícones do brega, como Reginaldo Rossi (1943-2013). Também são elementos no cancioneiro da MPB, em clássicos como “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque, mais conhecida na voz de Maria Bethânia, além de atravessarem a história do samba, seja na saudade entoada em “Peito Vazio”, por Cartola (1908-1980), ou nos dilemas do amor intranquilo homenageado por Alcione em “Me Tira do Sério”. E, é claro, se fez presente no repertório da sertaneja Marília Mendonça (1995-2021), que se autointitulava a Rainha da Sofrência e deixou hits como “Infiel”, que acumula mais de meio bilhão de visualizações no YouTube. 

Em todos esses casos, no entanto, raramente se sabe se essas composições foram motivadas por alguma experiência pessoal e, se foram, não se tem notícia de para quem seriam endereçadas. Na cena pop, por outro lado, essa dinâmica é diferente, de forma que a vida e a obra dos artistas acabam, muitas vezes, se confundindo. 

No Brasil, uma música de Manu Gavassi funciona como exemplo dessa lógica, tendo causado furor por, supostamente, falar sobre o relacionamento da cantora com um famoso. Trata-se de “Farsa” (2015), atribuída ao namoro dela com Chay Suede, com quem se relacionou entre 2011 e 2014. Já internacionalmente, a carreira de Taylor Swift, em si, é alegórica desse fenômeno. Ela, afinal, se consagrou lançando indiretas para seus antigos parceiros, como Tom Hiddleston e Jake Gyllenhaal. Outro célebre exposed do universo pop foi protagonizado por Beyoncé, que, em 2016, na faixa “Sorry”, do premiado disco “Lemonade”, falou sobre um episódio de infidelidade do marido, Jay-Z. Posteriormente, eles se reconciliaram. 

Identificação 

Para além de despertar a curiosidade do público, que tenta desvendar as histórias escondidas em cada verso, o doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula acredita que as dores de um coração partido são tão presentes na música e fazem tanto sucesso por gerarem identificação. “Quando vivemos uma desilusão amorosa, saímos desse lugar de senhores da razão e passamos a ter que lidar com uma sensação de fragilidade, num misto de sentimentos difícil de organizar. Então, em um processo que chega a ser terapêutico, a gente se projeta na música, que coloca em palavras emoções que talvez ainda nem tivéssemos identificado em nós”, sugere, citando que, às vezes, é por meio dessas composições que conseguimos sublimar – conceito da psicanálise que fala da transformação de algum desejo ou energia inconsciente em impulsos bem vistos pela sociedade – o desejo de vingança. 

O psicólogo lembra que, no universo sertanejo, canções sobre os dissabores de um chifre são bastante comuns. “Mas, mesmo assim, podemos notar que a forma dessa audição vai ser diferente de caso para caso. Uma coisa é ouvir aquela música por ouvir, outra é a pessoa ouvi-la quando está na fossa de verdade. A intensidade é outra. E isso é emblemático de como essas músicas provocam um efeito catártico”, avalia.