Música

Espetáculo de Ana Cañas e musical recolocam a obra de Belchior em cena

Compositor de “Sujeito de Sorte, “Como Nossos Pais e “A Palo Seco é homenageado em show da cantora e na peça “Ano Passado Eu Morri, Mas Esse Ano Eu Não Morro

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 19 de abril de 2024 | 06:00
 
 
Espetáculo de Ana Cañas e musical dirigido por Pedro Cadore recolocam em cena a obra de Belchior, compositor de “Sujeito de Sorte” e “A Palo Seco” Foto: Marcus Steinmeyer/Divulgação

Numa espécie de lona de circo, a mulher inicia o canto com certa serenidade, até que toma impetuosamente a cena, ergue os braços, e o semblante, exasperado, é a perfeita tradução da voz a potencializar cada palavra, dando a medida exata de seu poder inflamável. “Como Nossos Pais”, na interpretação de Elis Regina (1945-1982), apresentou toda uma geração a Belchior, que, cinco anos antes, em 1971, já havia vencido o IV Festival Universitário de Música Popular Brasileira, com a lancinante “Na Hora do Almoço”. Mas a aclamação nacional veio mesmo com o desabafo sobre a falta de perspectiva de mudança: “Ainda somos os mesmos/ E vivemos/ Como nossos pais”.

“Lembro que foi um assombro e fiquei perplexa. Embora não entendesse com a devida profundidade alguns versos, a metafísica de outros me atingiu em cheio. É uma obra-prima da música popular brasileira”, exalta Ana Cañas, que sobe ao palco em BH neste domingo (21), num dos atos finais da turnê dedicada ao ídolo, que rendeu disco de estúdio e registros ao vivo em CD e DVD, o mais recente em Sobral, cidade natal de Belchior. Premiado como melhor show do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2022, o projeto nasceu “de forma despretensiosa e orgânica”, diz Ana. “A perenidade dos versos, e da poesia de Belchior, é uma coisa magnífica de se viver!”. 

O pontapé foi uma live durante a pandemia de Covid-19, concebida “para ajudar os amigos da equipe” da artista. “Não imaginei que fôssemos viver tudo isso, que faríamos 180 shows pelo país cantando Belchior. E eu acho muito bonito pensar que foi assim porque o amor é uma corrente muito poderosa e alicerça destinos que não podemos sequer prever”, conjectura ela. Pedro Cadore, que também descobriu o compositor com “Como Nossos Pais”, exalta o mesmo sentimento. Ele dirige o espetáculo “Belchior – Ano Passado Eu Morri, Mas Esse Ano Eu Não Morro”, em cartaz na capital mineira desta sexta (19) a domingo (21), após temporada de sucesso no Rio.

“As pessoas se esquecem de amar”

“Belchior tem um discurso muito humano, fala de pessoas e situações comuns, e, principalmente, da força do amor, que é um assunto universal que deve ser sempre revivido, porque as pessoas se esquecem de amar”, diagnostica Cadore. Protagonizado por Pablo Paleólogo e Bruno Suzano, o musical leva à plateia a íntima relação de Belchior com o dito cidadão comum, eu lírico de várias de suas canções. Cadore escreveu a dramaturgia com sua mãe, Cláudia Pinto, que, segundo ele, “viveu intensamente a época dos shows de Belchior no Teatro João Caetano”, no Rio, onde o músico era visto com frequência no ápice da carreira, e, sobretudo, na década de 1970.

Em meio à pesquisa de material, filho e matriarca se depararam com entrevistas de Belchior que os convenceram a focar a narrativa nos depoimentos. Corria o ano de 2018, e ambos viam “o mundo sem esperança, com a arte sendo desestabilizada por ataques de extremistas, e a peça precisava dessas palavras potentes”, justifica Cadore. Dividida em duas partes, a montagem privilegia tanto as canções que abordam o amor e a juventude quanto o caráter “de revolta, anarquista e desbravador” de Belchior, que, ao romper com os valores tradicionais da família, “rejeitou a necessidade de se tornar doutor e migrou para um mosteiro”, tornando-se símbolo na luta contra o autoritarismo.

Logo, o título do musical não poderia ser mais pertinente, pinçado de “Sujeito de Sorte”, lançada no histórico LP “Alucinação”, de 1976, e presença garantida no repertório que Cadore tocava ao lado dos amigos, em barzinhos na adolescência. “É como a fênix que ressurge das cinzas. Num tempo de desesperança, traz a vontade de renascer”, avaliza o diretor. Hoje, no entanto, ele considera que “Velha Roupa Colorida” dialoga melhor com os dias atuais, reafirmando o eterno movimento do mundo. “O tempo passa e precisamos desse rejuvenescimento, não podemos ficar presos a uma visão do passado”, acredita. “Uma nova mudança em breve vai acontecer…”, anuncia a letra. 

Canção censurada pela ditadura integra show

Ao eleger as músicas que comporiam sua homenagem a Belchior, Ana Cañas teve, como bússola, o coração. “A baliza foram as canções que mais me emocionam, pois acredito não ser possível atravessar um ser humano, e emocioná-lo, sem que isso aconteça, primeiramente, com o intérprete. Isso é um aprendizado que carrego comigo dos bares da noite paulistana, há 20 anos”, conta Ana. Apesar de conhecer a obra, a cantora não deixou de se surpreender ao receber de Camila e Mikael, filhos de Belchior com Ângela, com quem ele foi casado por mais de três décadas, uma “linda canção inédita”.

“Quando fiz o primeiro registro do show, que está no YouTube, perguntei a eles sobre as músicas que foram censuradas no período da ditadura”, revela Ana. Foi quando ela conheceu “Um Rolê no Céu”, que integra o show. “É como se fosse um recado do Belchior para nós, agora, em 2024”, sugere a artista. “Vou levar um disco, um disco voador/ De heavy metal/ Para a rave, um rock/ Flash Gordon nas estrelas”, poetiza a letra, que enumera um mar de referências líricas. Na opinião da cantora, a permanência de Belchior deve-se aos “versos muito atuais, filosóficos, aguerridos e acessíveis”. Em 2019, por exemplo, o rapper Emicida sampleou o hit “Sujeito de Sorte”.

Para Ana, Belchior realiza “uma alquimia mágica e idiossincrática”. “Toca o coração, arrepia a alma e inebria o cérebro. Tem recorte para todo lado, o viés coletivo, social, o amor, as paixões, a leveza da simplicidade de quem observa a vida, a terra, a cidade, o povo. É um gênio”, enaltece. Com o encerramento da turnê, em maio, ela prepara os próximos passos. “Nesse momento, estou em estúdio, em São Paulo, gravando disco novo, aplicando o que absorvi nessa caminhada ‘belchioriana’”, garante. A novidade chega à praça no segundo semestre, provavelmente em agosto, com faixas autorais “que versam sobre assuntos que ficaram na gaveta por toda a minha vida…”, arremata.

Serviço. 

O quê. Musical “Belchior – Ano Passado Eu Morri, Mas Esse Ano Eu Não Morro”

Quando. Nesta sexta (19) e sábado (20), às 21h; domingo (21), às 19h

Onde. Cine Theatro Brasil (av. Amazonas, 315, Centro) 

Quanto. De R$50 (meia) a R$100 (inteira) pelo www.eventim.com.br ou na bilheteria

Serviço. 

O quê. Show “Ana Cañas Canta Belchior”

Quando. Neste domingo (21), às 19h

Onde. Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, Centro)

Quanto. De R$45 (meia) a R$130 (inteira), pelo www.eventim.com.br ou na bilheteria