Artes Plásticas

Exposição 'Política e Vanguarda' resgata obras que contestam a ditadura militar

Unindo rebeldia e criatividade, artistas como Décio Noviello, Artur Barrio, Anna Bella Geiger, Cildo Meireles e Cybèle Varela deixaram os nervos à flor da pele

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 17 de abril de 2024 | 06:00
 
 
Exposição “Política e Vanguarda” resgata obras que contestaram os anos de chumbo da ditadura militar com os nervos à flor da pele, unindo rebeldia e criatividade Foto: Geraldo de Barros/Reprodução

Tortura. Horror. Medo. Ao invés de escape, a arte promovida por aqueles que o crítico e jornalista Frederico Morais chamou de “espécie de guerrilheiro”, procurou confrontar o regime militar, como “uma forma de emboscada”. Curador da inédita exposição “Política e Vanguarda”, que estreia nesta quarta (17) em Belo Horizonte e fica em cartaz até 18 de agosto, João Avelar lança – feito granada – uma expressão que condensa a insólita mistura entre lirismo e tensão para detectar a força perene daqueles tempos que permanece na atualidade: “Nervos à flor da pele”. A mostra compreende o período entre 1964 e 1985, os famigerados “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil. 

“É uma coincidência não tão coincidência assim. Há algum tempo vivemos, não só no Brasil, mas ao redor do mundo, um acirramento, essa polarização de que tanto se fala. Achei que era o momento oportuno para refletirmos sobre o que está acontecendo e buscarmos o caminho da pacificação dos espíritos”, defende Avelar. “O título da exposição resume bem a nossa intenção porque pensamos em política no sentido amplo da palavra, não só partidária, mas em relação a todo um sistema, ao machismo vigente, por exemplo”, complementa. Em contraponto à opressão, os anos 1960 e 1970 foram férteis em “rompimento dos padrões tradicionais, com formas híbridas de arte”. 

Em 1970, durante a histórica manifestação “Do Corpo à Terra”, definida por Frederico Morais como “arte-guerrilha”, o mineiro Décio Noviello (1929-2019) utilizou granadas para “pintar” e “colorir” o Parque Municipal e o Palácio das Artes, transformando a tensão em lirismo, revolvendo em vida o que estava confinado à morte. Paralelamente, artistas como Cildo Meireles e Artur Barrio queimavam galinhas diante dos olhos do público e jogavam trouxas repletas de sangue, espuma, carne e ossos no Ribeirão Arrudas, explicitando – e expurgando – toda a crueza da violência perpetrada pelo Estado. “Eram críticas pesadas, violentas. A do Noviello, embora muito forte, tinha um caráter mais lúdico”, diferencia Avelar. 

Tensão lírica

Capitão do Exército, Noviello manejava, como poucos, o artefato explosivo, o que foi fundamental para ele subverter a sua função específica. “Décio era uma pessoa muito próxima a mim, um artista imenso, que ainda não tem o reconhecimento devido”, reclama Avelar. Na exposição, além do registro com a ação das granadas de Noviello, que recebe um destaque especial, serão contempladas pinturas, desenhos, gravuras, fotografias e vídeos de nomes como Artur Barrio, Anna Bella Geiger, Cildo Meireles, Carlos Vergara, Glauco Rodrigues, Luiz Alphonsus, Samuel Szpigel, Nelson Leirner, dentre outros, totalizando quase 300 obras. 

“É um conjunto de criações muito contundente”, resume Avelar. Em 1967, “O Presente”, de Cybèle Varela, foi retirada da abertura da IX Bienal Internacional de São Paulo pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão de repressão da ditadura. Em formato de caixa que poderia ser aberta pelos espectadores, o interior revelava uma paródia ácida aos militares, com direito a um verso do Hino à Bandeira demonstrativo da hipocrisia reinante: “Recebe o afeto que se encerra em nosso peito juvenil”. Enquanto isso, os porões estavam abarrotados de jovens sendo torturados. 

Destruída pela família de Cybèle, com medo de retaliações, a obra acabou refeita, permitindo a sua reapresentação agora. Letícia Parente, Anna Bella Geiger, Amélia Toledo, Claudia Andujar, Judith Lauand, Regina Vater, Regina Silveira, Ana Vitória Mussi, Lenora de Barros, Lygia Pape e Mira Schendel reforçam a presença feminina na exposição, uma das preocupações de Avelar. “Existe um movimento internacional de valorização da produção feminina, refletindo, criticamente, a posição da mulher na sociedade”, ressalta. 

Marginalidade heróica

O curador explica que, no primeiro ciclo, entre 1964 e 1968, portanto antes do Ato Institucional Nº 5 que endureceu o regime e fechou o Congresso, “os artistas utilizavam uma linguagem mais pop”, e, com a instauração da censura prévia, passaram a se valer de “uma crítica mais subliminar”, substituindo a granada pela rasteira retórica, sub-reptícia. Até que o ar ficou irrespirável e o risco se tornou a única medida possível, como demonstra a manifestação de 1970, protagonizada por Noviello, Cildo Meireles, Barrio, e seus pares. “A classe artística, por ter a sensibilidade aflorada, é sempre motivadora de mudanças na sociedade”, acredita Avelar. 

É nesse contexto que se insere a noção de vanguarda presente na exposição. “Você teve os artistas realmente sendo protagonistas do momento político e cultural do Brasil, não apenas nas artes plásticas, mas em diferentes áreas, com o Cinema Novo, os festivais de música, os grupos de teatro”, enumera Avelar. Hélio Oiticica (1937-1980), ainda que filiado às artes visuais, aparece como inspiração e elemento propulsor dessa interação, com uma série de performances e instalações que marcaram época. Uma das mais emblemáticas virou camiseta na contemporaneidade, com os dizeres “seja marginal seja herói” e uma foto em que o bandido conhecido como Cara de Cavalo, que vitimou um policial em agosto de 1964, jaz abatido no chão, morto pela milícia. 

“Oiticica frequentava muito o Morro da Mangueira e tinha uma relação com a criminalidade. É importante compreender que, quando ele faz essa apologia ao marginal, à marginalidade, está tecendo uma crítica ao sistema burguês da época”, sublinha Avelar, que também exalta os Parangolés, outra criação icônica de Oiticica, de cuja cabeça surgiu a expressão “Tropicália”, responsável por batizar o movimento conduzido por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé no campo da música popular, representando, segundo o vocabulário do próprio Oiticica, suas “múltiplas tendências”.

Serviço

O quê. Exposição “Política e Vanguarda (1964-1985)” 

Quando. Desta quarta (17) a 18 de agosto, de terça a sábado, das 10h às 18h30; às quintas, de 12h às 20h30; domingos e feriados, das 10h às 16h30

Onde. Museu Inimá de Paula (rua da Bahia, 1.201, Centro)

Quanto. Gratuita