1967: o Ano da Psicodelia

Repleto de lançamentos emblemáticos, o ano que precedeu o enigmático 1968 até hoje deixa suas influências marcadas pelo LSD e pelo movimento hippie

Dom, 22/01/17 - 02h00

Em 1967, o mundo poderia ser descrito como um imenso barril de pólvora prestes a explodir. Em plena Guerra Fria, o Vietnã estava sendo massacrado, Mao-Tsé Tung inaugurava seu poder na China e Castello Branco deixava a Presidência vítima de um acidente aéreo, abrindo alas para Costa e Silva, o mais linha-dura nos anos de chumbo no Brasil. A guerra, simbolizada por bombas e tanques, encontrou um adversário na efervescência da contracultura semeada no Ocidente. Hoje, 50 anos passados daquele verão que nos brindou com as estreias de Jimi Hendrix, Pink Floyd e The Doors, nos apresentou a “Terra em Transe” de Glauber Rocha, fincou o auge dos Beatles com “Sgt. Pepper’s” e o início da Tropicália, o mundo não parece mais capaz de ser salvo pela combinação de flores, LSD, rock ‘n’ roll e muita rebeldia.

Mas as histórias, as criações e as músicas, especialmente, de 365 dias tão intensos, parecem continuar dizendo muita coisa sobre o hoje: um mundo moderno, conectado e teoricamente diverso, mas onde cada vez mais muros são erguidos para distinguir pessoas e bombas continuam matando inocentes.

Se 1968 é o ano que não terminou, parafraseando Zuenir Ventura, “1967 pode ser o ano que explode até hoje na modernidade”, como pontua o professor Rafael Rusak, do departamento de Comunicação da PUC Rio e estudioso dos anos 60. Ele sublinha que 1967 trouxe praticamente todas as experimentações que se desdobraram nas décadas seguintes, com um sabor altamente psicodélico, claro. Além disso, para ele, o contexto “faça amor, não faça guerra”, bastante difundido devido aos ataques norte-americanos ao Vietnã, seduz as gerações globalizadas justamente por propiciar um sentimento não concretizado hoje, apesar dos mesmos sentimentos de indignação.

“Acredito que as nova gerações que ouvem Beatles, Caetano Veloso, Pink Floyd têm uma vontade de identificação através de críticas que não são mais feitas pela música contemporânea, nessa música globalizada, na qual gêneros se confundem e discursos nem sempre são certeiros para mudar situações. As exceções são o funk e o rap sustentando uma linha de protesto quase solitária, que sumiu da música popular, sumiu do rock, do samba, até. Então, aquela década e, especialmente, 1967, são a referência mais forte de crítica e liberdade para esse mundo moderno em que vivemos”, diz.

Uma referência marcada pelo “Verão do Amor”, que transformou Los Angeles em um acampamento hippie pré-Woodstock, e o Festival Pop de Monterey, o primeiro de uma era de grandes eventos que reuniu The Who e Janis Joplin, por exemplo, essenciais para a produção de discos tão psicodélicos em 1967.

Para completar, a Guerra dos Seis Dias, com Israel atacando a Síria e a Cisjordânia; Che Guevara capturado e morto na Bolívia; o avanço das ditaduras latinas e o fracasso da primeira missão espacial com o objetivo de chegar à Lua, que acabou por matar três astronautas, deixando um receio tecnológico-exploratório no ar.

“Nesse contexto, a arte, a psicodelia e o LSD se uniram como símbolo da fuga possível de um mundo catastrófico, a liberdade viável para os males da década. Um cenário tão impactante que, mesmo sendo inspiração de álbuns de Pink Floyd, Beatles, Hendrix, Velvet Underground e Stones, além de particularmente defendido pela classe médica, o LSD foi proibido justamente em 1967, devido a seu uso recreativo cada vez mais exacerbado. Era uma forma de dizer ‘não’ à onda hippie, paz e amor”, analisa o crítico musical Marco Antonio Malagolli, especialista em Beatles.

Fato é que 1967 agregou uma concentração de insatisfações que explodiriam no emblemático maio de 1968 e influenciariam uma série de movimentos por pacificação e direitos, desde a queima dos sutiãs, o clímax da luta pelos direitos civis, o fim da Guerra do Vietnã, até as lutas dos dias de hoje. Segundo a historiadora Heloísa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais, 1967 reverbera na expressão de movimentos como o feminismo, nas questões de gênero e na liberdade individual cerceada.

“Vivemos um período em que a moral, a família, o patriarcado é questionados na arte também. A diferença é que nos anos 60, e especialmente em 1967, surgem nomes, vozes, rostos, discos capazes de representar esse enfrentamento direta e indiretamente. Hoje, ainda que o conflito exista, ele não tem grandes heróis. Por isso, há uma ligação forte da contemporaneidade com a década de 60, que tem esses heróis. E ainda haverá durante muito tempo pelo pioneirismo e inspiração de um ano repleto de clássicos”, diz.

Música Brasileira. Enquanto a psicodelia fervilhava lá fora, no Brasil, o legado de 1967 está intimamente ligado ao III Festival da Record, quando o jovem Edu Lobo venceu a disputa acirrada com “Ponteio” – superando Chico Buarque e sua “Roda Viva”, Caetano Veloso e a descarada “Alegria, Alegria”, Gilberto Gil e o “Domingo no Parque” e Roberto Carlos com “Maria, Carnaval e Cinza”.

O produtor Roberto Menescal avalia que, a partir dali, a simbologia da guitarra elétrica, que gerou disputas entre as turmas tradicional e experimental, foi essencial para entender como a música popular brasileira passou a se confrontar com interferências diversas nas décadas seguintes. Até “minguar na globalização musical contemporânea”, como ele analisa.

“É um choque. A Tropicália, que acontece logo no ano seguinte, vinha sendo anunciada pelos Mutantes no palco com Gilberto Gil e na loucura que foi ‘Alegria, Alegria’, de Caetano. ‘Ponteio’ venceu muito pela tradição. A polêmica em torno da guitarra foi apenas um símbolo de que qualquer interferência na tradição poderia ser malvista. Hoje, a experimentação na música brasileira vive o auge, transgride a fronteira de gêneros. Você pode tudo: eletrônico com piano, violão com funk. Hoje em dia, não vejo qualquer busca pelo que chamam de “MPB tradicional”. E, sim, um questionamento. O legado de 1967 é esse questionamento”, diz Menescal.

 

Beatles

FOTO: Joel Brodsky / Divulgação
 

“Sgt, Pepper’s Lonely Hearts Club Band” foi lançado um ano após os Beatles abandonarem os shows. A estética multigêneros, perpassando por rock, música de câmara, jazz, blues, música circense, música clássica oriental e vaudeville, é o pano de fundo para uma experimentação jamais vista. “É como se esse disco dissesse que o passado precisa ser superado através do pacifismo, da união de gêneros orientais e ocidentais, ao mesmo tempo em que as músicas batem nas inocências de ilusões desmedidas. É quase um efeito físico de mudança, uma ode às drogas recreativas e à liberdade da mente”, diz o professor Rafael Rusak, do departamento de Comunicação da PUC Rio.


Aretha Franklin

FOTO: Columbia Records / Divulgação
 

Aretha Franklin não precisou de um grande disco. Em 1967, se tornou símbolo feminista ao gravar “Respect”, inflamando a luta pelos direitos civis. O compositor da canção, Otis Redding, escreveu a letra em 1965 para pedir o respeito e admiração de uma mulher. Ao regravá-la, Aretha inverteu os papéis e cobrou o contrário: respeito para as mulheres. A cantora Anelis Assumpção, fã da norte-americana, diz que a canção a influenciou a cantar e conquistar seu próprio espaço. “Ela é uma das cantoras que me mostraram ser possível. ‘Respect’ carrega uma injeção de ânimo, de orgulho em ser negra, cantora, e diz tudo o que nós, mulheres, queremos até hoje”, diz Anelis.


The Velvet Underground

Apesar de ser um fiasco comercial no lançamento, a estreia de Lou Reed e companhia com “The Velvet Underground & Nico” se tornou uma referência em quebras de tabus. A sonoridade pop, a parceria ea influência de Andy Warhol e da cantora Nico, além das letras controversas sobre prostituição, abuso de drogas e comportamentos sexuais alternativos, fizeram com que o disco alcançasse o status de revolucionário nos dias atuais. “Na época, muitas lojas deixaram de tocar o álbum com medo de que os jovens pudessem se influenciar por versos tão pesados e sombrios. Mesmo os críticos ignoraram sua potência de imediato. Hoje, é exatamente o que as novas gerações ainda buscam, com quebras de padrões de gênero, vontade de expandir a consciência, de ter atitudes contrárias aos padrões”, analisa o baterista do Barão Vermelho, Guto Goffi, fã do disco.


Elvis Presley

FOTO: Enterprises Inc / Divulgação
 

Mesmo perdendo para os Beatles como fenômeno cultural, em 1967 o Rei do Rock lança um divisor de águas na carreira. “How Great Thou Art”, seu terceiro disco gospel, é considerado o ponto alto de maturidade em cima de um repertório muito diverso que Elvis demonstra dominar. O disco levou um Grammy e é referência em técnica e emoção. “É um álbum grandioso sonoramente, cheio de coros, extensões vocais de Elvis, guitarras e uma bateria impecável. Sua obra-prima, na minha opinião”, diz o músico Rodrigo Emke, espe- cia- lista em Elvis.


Caetano Veloso e Gal Costa

Mesmo tendo pouca repercussão, o disco “Domingo”, que apresentou Caetano e Gal ao público, ganhou o reconhecimento de importantes artistas da época, como Elis Regina, Wanda Sá e Edu Lobo. A produção assinada por Dori Caymmi, filho de Dorival Caymmi, ao lado de Francis Hime e Roberto Menescal, dá um tom bem bossa-nova às canções, incluindo ao sucesso “Coração Vagabundo”. “Acho que esse disco, em certa parte, nasce com um senso estético ultrapassado, mas com um sentido para dar vazão àquelas ótimas canções, porque a mente de Caetano já fervilhava para a Tropicália, para outras experimentações que viriam no ano seguinte. Prova é que, em novembro de 1967, ele já apresenta ‘Alegria, Alegria’, em clima bem distante do seu primeiro disco”, avalia o produtor Roberto Menescal.


Jimi Hendrix

FOTO: Harry Goodwin / Divulgação
 

O maior guitarrista de todos os tempos lançou “Are You Experience” quebrando todos os padrões da psicodelia. A improvisação, permitindo o flerte do rock com o jazz, bebendo em escalas orientais, efeitos e explosões de guitarras distorcidas, além das técnicas como tocar sem encostar nas cordas e usar os dentes na guitarra, deu ao rock a liberdade incondicional. No emblemático 1967, Hendrix marcou a história do Monterey Pop Festival ao queimar sua Fender Stratocaster em cima do palco. “Qualquer um que queira tocar guitarra hoje precisa ouvir Hendrix. Seu primeiro disco reinventa a guitarra”, avalia Lúcio Maia, guitarrista do Nação Zumbi.


Milton Nascimento

Quando lançou “Travessia” pela gravadora A&M, e com encarte assinado por Edu Lobo, Bituca já havia sido regravado por Elis Regina um ano antes. Sua estreia fonográfica, porém, revelou não só um compositor de mão cheia, mas um intérprete incondicional. “Três Pontas”, “Maria, Maria”, “Canção do Sal” e “Morro Velho” estão no LP, gravado com o Tamba Trio. “Milton finca sua bandeira na música brasileira nesse disco. Não é só por ter grandes canções, mas por já apresentar um cuidado estético com os arranjos grandioso e um encaixe de voz perfeito. Não foi um artista a ser lapidado, ele apenas evoluiu com o tempo. Por isso esse disco é tão essencial”, diz Túlio Mourão, pianista que trabalhou com Bituca no Clube da Esquina.


The Doors

FOTO: Joel Brodsky / Divulgação
 

O crítico Paul Williams colocou a banda no mesmo nível dos Rolling Stones, com o disco de estreia. Todas as letras de Jim Morrison são muito influenciadas pelo livro “As Portas da Percepção”, de Aldous Huxley, e dão ao álbum uma personalidade única capaz de unir rock, blues, jazz e muita poesia de primeira linha em faixas como “Break on Through (To the Other Side)”, “Light My Fire” e “The End”. “É um disco que exercita sua mente a pensar fora das caixinhas impostas na época. É como ler um livro recheado de boas indicações, mas com um som muito potente de bônus”, diz o ator Eriberto Leão, fã de The Doors e protagonista do musical “Jim”.


Pink Floyd

A estreia com “The Piper at the Gates of Dawn”, único disco sob liderança do gênio indomável Syd Barret, antes da fase David Gilmour, expõe toda a criatividade peculiar dessa lenda. As letras de Syd, altamente influenciadas pelo LSD, não falam apenas de gnomos, espantalhos, um gato demoníaco, unicórnios e bicicletas mágicas. Sob o pano de fundo do psicodelismo instigante floydiano, abastecido por gritos, solos incríveis e arranjos altamente crus, o disco vai além. “É um álbum que conta a história de uma travesti em ‘Arnold Layne’, usa passagens da Bíblia para ironizar modos de vida conformistas (‘Take Up Thy Stethoscope and Walk’), é bastante abastecido pelas viagens libertárias e imaginárias da mente, pelo expurgo de demônios para viver em um mundo melhor”, analisa Rafael Russak, professor de comunicação da PUC Rio e pesquisador dos anos 60.


Rolling Stones

FOTO: Harry Goodwin / Divulgação
 

O disco contou com participações de John Lennon e Paul McCartney, além de ter os arranjos de cordas elaborados por John Paul Jones, que mais tarde se tornaria baixista do Led Zeppelin. Mesmo sendo considerado maldito por entrar na onda lisérgica, o álbum se tornou clássico. “É um disco que aborda a relação do homem com a tecnologia e tem na música ‘Steel Weels’ o pioneirismo da temática espacial entre as produções musicais psicodélicas da época, que influenciaria David Bowie e Pink Floyd. Ou seja, a imagem suja dos Stones aliada à psicodelia seria impulso para gerações questionarem a modernidade com uma postura mais agressiva”, diz o músico Keta, vocalista da banda cover It’s Only Rolling Stones.

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