Não muito diferente de outras áreas artísticas, a presença das mulheres em certos campos das artes cênicas ainda se faz quantitativamente tímida em relação à dos homens, embora vale destacar que o movimento vem crescendo. É assim, por exemplo, na dramaturgia.
Pensando a cena mineira, Sara Pinheiro é um dos nomes que tem dedicado especial atenção à prática e ao pensamento dramatúrgico. Uma das criadoras do Janela de Dramaturgia – iniciativa que publica e divulga textos teatrais, incentivando a escrita e a discussão sobre o tema –, ela aponta que, nos seis anos do projeto, a proporção de nomes femininos e masculinos transparece os reflexos sociais.
“A presença masculina ainda é muito maior”, afirma. “Mas estamos em um momento em que, apesar dos retrocessos políticos, há um movimento forte que repensa esses espaços. Isso envolve muita luta, o que demora, mas já vemos reverberações e modificações”, comenta Sara.
Para algumas gerações de dramaturgas, o caminho de desbravamento do território se fez sem muitas referências. Os nomes vinham da literatura, e não exatamente da dramaturgia. “Desde a adolescência, tive Virgínia Woolf (1882-1941) como uma referência, mas na dramaturgia não tive. Eu via Cida Falabella como uma referência interessante, assim como Ione de Medeiros. Embora não sejam fundamentalmente autoras, são criadoras e têm essa visão da cena que passa pela dramaturgia”, comenta a diretora, atriz e dramaturga Rita Clemente, citando também a diretora paulista Bia Lessa, que a estimulou a escrever a partir das adaptações de romances e contos.
Já Cidinha da Silva, escritora, dramaturga e pesquisadora, diz ter encontrado mulheres negras no campo da dramaturgia, não propriamente dramaturgas. Ela se refere à professora Leda Maria Martins. “A leitura estética do Teatro Experimental do Negro feita no livro ‘A Cena em Sombras’ me impactou muito na juventude. Além disso, o conceito de ‘oralitura’, trazido por Leda para o Brasil para pensar a performance negra nas culturas populares, é uma ferramenta que tenho usado ao longo da vida”, comenta Cidinha, ainda fazendo referências à poética de Elisa Lucinda.
Já as atrizes e dramaturgas Marina Viana e Júnia Pereira tomam como referência Sara Rojo e o trabalho coletivo do Mayombe Grupo de Teatro. “Quem me inspirou foi Sara Rojo. A cada espetáculo, escrevíamos todos juntos. Por isso, não gostava do nome dramaturga. Falava que era uma atriz que escrevia”, conta Marina. “De toda forma, minha geração tem a Grace Passô como referência. Estávamos estudando e, de repente, ela aparece”, afirma.
“Grace é muito próxima da cena e foi importante tanto em relação ao que escreve, como também ao movimento que gerou com esse desejo de estar e pensar o lugar da dramaturgia”, comenta Sara Pinheiro.
Diferenças. Mas além da presença ainda em menor escala, o tratamento também se faz diferente. “Na dramaturgia, tenho Caryl Churchill, do Reino Unido, como referência. Ela tem a mesma estatura que Harold Pinter, dramaturgo inglês da mesma geração que ela. Mas, por ser mulher, Caryl não tem a mesma visibilidade. Ela é importante, profícua e faz muitas experiências com a linguagem. Cada peça dela é um universo especial, e o fato de ser mulher encoraja outras a escreverem”, comenta a jornalista e dramaturga Silvia Gomez, mineira que se firmou em São Paulo, integrando por nove anos o Círculo de Dramaturgia do CPT, Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes Filho.
Pensando nas brasileiras, ela cita nomes como a paulista Leilah Assumpção (com “Intimidade Indecente”, em cartaz até 17 de dezembro no Teatro da Cidade) e as dramaturgas mineiras das décadas de 60 e 70 Gabriela Rabelo e Consuelo de Castro (falecida em 2016). “Precisamos voltar a falar delas, porque nós não falamos. É importante percebermos que nós, mulheres, também podemos cair numa lógica que privilegia a escrita masculina. Nossas obras recebem tratamentos diferentes. É como se a obra da mulher tivesse que falar muito alto para ser ouvida”, completa Silvia.
Para Júnia, tanto homens como mulheres têm sido atravessados pelas questões de gênero, mas as diferenças se fazem históricas. “É como se as questões que os homens trazem fossem universais. E quando trazemos algo do nosso ponto de vista, é como se a perspectiva feminina fosse um lado B”, pontua.
Escrita feminina. Na discussão sobre a dramaturgia criada por mulheres, Silvia expõe o questionamento se existe uma escrita feminina. “Existe, por exemplo, uma arquitetura feminina? Não. Existem boas mulheres em arquitetura. O mesmo para a dramaturgia. Mas, dentro dessa ótica, que é a da expressão individual, quando escrevemos, estamos sempre falando a partir do que passa pelos nossos corpos. E é desse lugar de mulher que falam as dramaturgas, ainda que falemos sobre o mundo a nossa volta. Não tem como não passar por esse corpo. Então, as questões da mulher vão aparecer”, observa Silvia. “Esse é um momento privilegiado de se perguntar o que é construção? O que é verdade sobre a mulher, o que é ser mulher? É um lugar híbrido, e que bom que podemos discutir isso, porque discutir gênero é discutir liberdades”, completa ela, vencedora, em 2015, dos prêmios da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) e Aplauso Brasil pelo texto “Mantenha Fora do Alcance do Bebê”.
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