Cinema

Acesso ao mainstream afirma a diversidade do cinema queer

2017 tem sido aclamado como um marco histórico na visibilidade e na produção de filmes com histórias LGBTQ

Dom, 14/01/18 - 02h00

Denilson Lopes ainda se lembra do primeiro filme com personagens gays que viu: “Fazendo Amor”, em 1982. “Minha lembrança é a sala enorme do Cine Brasília praticamente vazia. Se tivesse três pessoas, era muito. Havia uma sensação de certo incômodo, algo meio proibido”, recorda o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas passados 36 anos, muita coisa mudou.

E não é só que Denilson se tornou o principal pesquisador do tema no Brasil hoje, mas o cinema queer deixou de ser associado à ideia de algo proibido e relegado a um submundo quase invisível. E para quem ainda duvida ou não se deu conta, 2017 foi uma prova quase irrefutável disso. Da histórica vitória de “Moonlight” no Oscar, passando por produções premiadas nos Festivais de Sundance (“Me Chame pelo Seu Nome”, “Os Iniciados”, “Ratos de Praia”, “Noviciado”), Berlim (“Uma Mulher Fantástica”) e Cannes (“120 Batimentos por Minuto”) – e, no Brasil, a repercussão e recepção de longas como “Corpo Elétrico”, “Divinas Divas”, “Meu Corpo É Político” e “As Boas Maneiras” –, o ano tem sido aclamado como um marco histórico na visibilidade e na produção de filmes com histórias LGBTQ.

Mais que a quantidade ou o volume de premiações, porém, o que mais se destaca é a diversidade narrativa dessa lista. São longas que vão além das velhas histórias de “saída do armário” com vilões opressores, finais trágicos, o fantasma da Aids ou clichês cômicos que sempre dominaram o cinema queer. E enxergam a complexidade e a variedade da existência LGBTQ hoje, com personagens e tramas diversos que atravessam a orientação sexual com outras questões – como a racial em “Moonlight” e “Eu Não Sou Seu Negro”, ou o universo operário, em “Corpo Elétrico”. “Não existe ‘o’ cinema queer, mas vários cinemas queer, assim como não existe ‘a homossexualidade’ e ‘a transexualidade’. O que temos são formulações em que as orientações sexuais são abordadas do ponto de vista pessoal e político pela sensibilidade de cada artista”, pontifica Denilson.

Um bom exemplo disso é o documentário “Meu Corpo É Político”, da diretora Alice Riff. “Na minha pesquisa, percebi que as produções com transexuais eram filmadas muito à noite. Decidi filmar de dia, ocupar esse espaço com câmera estável, tudo nítido e focado, sem falar de sexo”, descreve a cineasta.

No outro extremo do espectro narrativo e social, um filme como “Me Chame Pelo Seu Nome” – forte candidato ao Oscar de melhor filme que estreia na próxima quinta – busca operar esse mesmo processo de “naturalização” da existência queer com uma história universal do primeiro amor, em que a orientação sexual é apenas um elemento de vários. Mas o próprio diretor, Luca Guadagnino, reconhece que, no atual momento de virulentas reações conservadoras no mundo, essa normalização acaba tendo seu aspecto político. “Tudo isso que estamos vendo é o resultado da soma de medos irracionais e do terror ao ego. Se o filme tocar as pessoas com sua atitude de se abrir à beleza alheia e, por meio disso, a sua capacidade de entender o outro, será uma coisa boa”, reflete o cineasta italiano.

Elias Ribeiro, produtor de “Os Iniciados” – candidato da África do Sul ao Oscar de filme estrangeiro que causou polêmica no país e também estreia aqui na quinta –, ecoa essa ideia de que a importância política desses longas está em sua própria existência. “Nosso roteirista falou algo muito bacana na sessão para o rei da comunidade Xhosa (retratada no longa): ‘todo mundo tem direito à opinião, mas o fato de eu estar tendo essa conversa com vocês, com um rei, falando do medo de ser gay, de ser representado – não existe vitória maior que essa’”, conta o brasileiro, que ouviu de muitos jovens negros sul-africanos que “Os Iniciados” foi a primeira vez que eles se viram representados na tela.

Para o professor e pesquisador Chico Lacerda, se a questão da afirmação da orientação sexual tem deixado de ser o tema central nas produções com gays e lésbicas, porém, nos filmes com personagens trans e não binários, o momento é outro. “Neles, eu ainda vejo esse pé na porta político muito forte. E, talvez, passado esse momento de afirmação, os realizadores também vão buscar questões triviais, variadas”, reflete.

É nesse sentido que, mesmo que todos os entrevistados concordem que não é necessário ser um diretor ou ator LGBTQ para fazer um bom filme queer, a luta por maior autoria trans é o próximo grande desafio. Nenhum longa da lista foi dirigido por um(a) cineasta transexual. “A mobilização de artistas trans por representatividade é bastante reveladora de como esses corpos foram historicamente excluídos do mercado de trabalho e como as instituições culturais perpetuam essa desigualdade”, afirma Marcelo Caetano, diretor de “Corpo Elétrico”.

Denilson Lopes concorda que, para que se tenha uma sociedade mais democrática e justa, essas políticas afirmativas se fazem necessárias, mas não suficientes. “Você pode ser uma diretora trans, ou negra lésbica, e fazer um filme extremamente conservador. E pode ser um homem branco heterossexual e fazer algo interessante. Não podemos abdicar de um debate que não seja só político, mas também estético, porque o cerne da questão queer é exatamente o deslocamento de identidades fechadas”, argumenta.

Pioneiro alemão

Um dos primeiros filmes queer de que se tem notícia é o alemão “Different from Others”, de 1919. A produção do diretor Richard Oswald narra a história de dois músicos que se apaixonam e são separados por chantagens e escândalos.

 

Distribuição ainda deixa a desejar

Mesmo com a aclamação e premiação desses filmes, e a chegada de vários deles ao circuito de salas, o diretor Marcelo Caetano considera que a distribuição e exibição ainda constituem um grande desafio para produções queer no Brasil. Vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes, “120 Batimentos por Minuto”, por exemplo, ainda não encontrou uma sala para permanecer em cartaz em Belo Horizonte.

“Ao contrário do que acontece em muitos países europeus e nos EUA, não há distribuidoras especializadas aqui, como a Peccadillo e a TLA na Grã- Bretanha, ou a Optimale e a Epicentre na França. A Polônia, um dos países mais conservadores em questões LGBTQ, tem a Tongarino, que distribui títulos independentes”, ele lista. No Brasil, Caetano destaca a experiência pioneira, mas curta, da Festival Filmes, fundada por Suzy Capó. “Existe uma produção bastante diversificada e inovadora, que continua inacessível para o público brasileiro”, lamenta.

Acesso. Já o professor Chico Lacerda, que pesquisou o cinema queer nos vários ciclos do audiovisual nacional, celebra uma maior abertura e acesso hoje do que nos anos 90, por exemplo. “Vejo uma maior possibilidade de acesso, seja no cinema mainstream ou em outros canais, com o crescimento da TV a cabo, o streaming, a internet, que deram vazão a muita coisa que antes ficava restrita”, considera, citando o terror “Cru” como um bom exemplo de cinema queer que chegou ao país via Netflix.

A cineasta Alice Riff, por sua vez, faz uma crítica aos festivais de cinema no país, que ainda insistem em tratar o cinema queer como “produções de nicho” em mostras temáticas. Ela cita como exemplo o documentário “Waiting for B.”, que, em sua opinião, não teve o reconhecimento que merecia.

“Ele faz todo um retrato de uma juventude gay, pobre, da periferia, com um bom recorte social e construção de personagens, e só passou em um trilhão de festivais de nicho”, questiona Alice.

 

Safra traz poucas produções cômicas

Para o professor Denilson Lopes, o que ainda falta à produção queer atual é usar o bom momento para resgatar a história LGBTQ. “Grande parte dos filmes atuais, especialmente brasileiros, está preocupada com o hoje. E talvez seja uma boa hora de mostrar como foi a experiência queer em outros momentos – como o ‘120 Batimentos por Minuto’, por exemplo – e pensar como ela faz sentido hoje em dia”, propõe.

Tanto ele quanto o professor Chico Lacerda concordam, porém, que a grande lacuna do cinema queer atual é a comédia. O gênero, talvez pela forte preocupação com o politicamente correto e o reforço de estereótipos, é quase ausente nessa lista de destaques de 2017. “Nos anos 90, o Mix Festival tinha uma mostra de cinema trash. Depois disso, ficou tudo muito sério. As pessoas passaram a tratar o clichê como algo necessariamente negativo”, argumenta Lacerda. Denilson acrescenta que “é possível fazer coisas muito legais com o escracho, ainda mais no Brasil, em que a comédia é tão forte”.

Já o produtor Elias Ribeiro acredita que falta diversidade. “Ainda vejo uma visão meio classicista, racista, de não gostar de gay afeminado, gordo, preto, pobre. Há certo separatismo, até mesmo por parte da mídia queer”, critica. E o diretor Marcelo Caetano acha que ainda são necessários mais filmes: de 138 longas nacionais lançados no Brasil em 2017, segundo o Filme B, apenas sete (ou cerca de 5%) tinham protagonistas LGBTQ. “Durante o lançamento do ‘Corpo Elétrico’, fui questionado algumas vezes sobre a grande representatividade dos filmes LGBTQ no cinema brasileiro. Algumas pessoas, talvez assustadas com a ‘invasão queer’, chegavam a falar de um excesso de representatividade. Mas a verdade é que ainda é um número muito baixo”, protesta.

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