Mostra SP

As intermitências da morte 

Vencedor da Camera D’Or em Cannes, colombiano “A Terra e a Sombra” é belo drama com cores brasileiras

Ter, 27/10/15 - 03h00
Revelação. Premiado em Cannes, “A Terra e a Sombra” demonstra as péssimas condições de trabalho nos canaviais da Colômbia | Foto: Topkapi Films/Divulgação

São Paulo. Quando sua mãe morreu, o colombiano César Augusto Acevedo foi tomado por uma solidão inconsolável que partiu sua família. E a única forma que encontrou de se purgar dela foi por meio do cinema. Jornalista, ele não queria, porém, contar uma mera história pessoal – e decidiu levar seu luto para um universo que conhecia de passeios com o pai na infância e que já havia investigado antes: as plantações de cana no interior do país.

O resultado é o belíssimo “A Terra e a Sombra”, que lhe rendeu a Camera D’Or de melhor diretor estreante no último Festival de Cannes. O longa acompanha o patriarca Alfonso (José Felipe Cárdenas), que retorna para sua terra, no meio de um canavial, décadas após ter abandonado a família. Ele volta para cuidar do filho Gerardo (Edison Raigosa), agonizando em cama com problemas respiratórios causados pela poeira e as cinzas das queimadas da plantação.

“O filme tem dois níveis de leitura. Para o espectador, é o estudo de um universo fechado e de uma realidade social. Para mim, é uma forma de revisitar pessoas que amo por meio do cinema e de dizer adeus à minha mãe”, explicou Acevedo, após a sessão do longa na Mostra de São Paulo no último sábado. É exatamente isso o que o colombiano faz: usar um contexto social duro e realista para construir um drama em que o aprisionamento sufocante, e as marcas e cicatrizes deixadas ao se acompanhar a convalescência de um ente querido, são representadas, respectivamente, pelo isolamento da casa e pela poeira e pelas cinzas que impregnam e corroem tudo e todos dentro dela.

A excelência com que ele realiza isso se deve, especialmente, a dois grandes colaboradores. O primeiro é o diretor de fotografia Mateo Guzmán. Também estreante, é ele que constrói visualmente o principal discurso do filme: de que a casa, com as janelas fechadas por causa de Gerardo, é a prisão escura da morte, e a vida e a luz só se encontram lá fora, com a câmera se movimentando somente nas externas.

A segunda colaboração é o que dá um sabor fortemente brasileiro ao longa, que lembra muito o realismo contido de Walter Salles e o recente “A História da Eternidade”, de Camilo Cavalcante. Acevedo trabalhou com a preparadora Fátima Toledo na escolha e direção de seu ótimo elenco, majoritariamente amador. “De início, queria profissionais devido à carga dramática da história. Mas vi que precisava também da verdade ao retratar as pessoas do campo, e fomos procurá-los nas locações”, conta o diretor.

A aposta se mostrou certeira, com um elenco de rostos johnfordianos que carregam no olhar e na pele a dureza daquele lugar. O maior achado é José Felipe Cárdenas, que vive o protagonista Alfonso. “Ele era o cara que servia café e varria no lugar onde estávamos fazendo a seleção. Ele só ficava ali, um dia olhamos para ele e caiu a ficha”, revela Acevedo, sobre o amador, que é fotografado em dois momentos cruciais como John Wayne sob o batente da porta em “Rastros de Ódio”, e mantém a mesma dignidade e presença do astro. O outro destaque é Marleyda Soto, única profissional, que dá a Esperanza, esposa de Gerardo, a dor pelo sofrimento do marido e a força da mulher que precisa sair de casa para trabalhar no lugar dele.

Com a carga dramática em boas mãos, o grande desafio de “A Terra e a Sombra” foi filmar nos canaviais. Sem permissão dos donos das terras, que não queriam expor no cinema as terríveis condições de trabalho reveladas no longa, a produção teve que alugar um terreno, tirar parte da plantação para construir a casa e planejar por meses tudo que filmariam ali – especialmente um incêndio no clímax do longa.

“É um fogo de sacrifício, mas também renovador”, reflete o cineasta. Com a denúncia da terrível realidade retratada no filme, Acevedo temeu que não conseguiria lançar “A Terra” na Colômbia, controlada pelos donos daquelas terras – “políticos, narcotraficantes, paramilitares, difícil saber quem é o pior”. A Camera D’Or em Cannes, porém, maior prêmio do cinema colombiano até hoje, tornou a estreia inevitável. “Recebemos mensagens e ameaças depois do prêmio, dizendo que o filme era mentiroso. Mas ele chegou às salas e ficou cinco semanas em cartaz, o que é um sucesso para um filme desses lá”, celebra o diretor.

O repórter viajou a convite da Mostra

---

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo mineiro, profissional e de qualidade. Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar.

Siga O TEMPO no Facebook, no Twitter e no Instagram. Ajude a aumentar a nossa comunidade.