Urbano

As vozes incômodas das ruas

Processo movido pela Prefeitura de Belo Horizonte contra o grafiteiro Felipe Arco desperta olhar para os limites entre o grafite e o “pixo”

Dom, 22/10/17 - 02h00
O Circuito Urbano de Arte (Cura) transformou as empenas de prédios do hipercentro de BH | Foto: Uarlen Valério - 6.8.2017

Quando o oficial de Justiça chegou à casa do grafiteiro e escritor Felipe Arco com uma intimação, há pouco mais de dois meses, ele desconfiou que o motivo do processo poderia ser algum grafite sem autorização feito por ele anos atrás. Ao ler o documento, ficou surpreso: o motivo da denúncia protocolada contra ele na Polícia Civil de Minas Gerais eram seus versos escritos com caneta à base de água, em lixeiras do centro de Belo Horizonte. “Fiquei assustado porque não imaginava que algo assim fosse gerar problema”, conta Arco que, formado em marketing, escolheu se dedicar à arte, sobrevivendo da venda de seus livros e de trabalhos de pintura e grafite.

Felipe Arco é o pseudônimo que Celso Felipe Marques Rosa usa para assinar suas criações e seus perfis nas redes sociais, como o do Instagram, no qual tem mais de 100 mil seguidores. Ele diz receber diariamente uma média de 300 mensagens de pessoas interessadas em seu projeto. “Durante a semana, são mais de 1,2 milhão de acessos. A maioria é de Belo Horizonte, então achei que por conta disso nunca fosse rolar algum processo. Inclusive, estava parado quando recebi a intimação. A intervenção nas lixeiras é algo que faço há uns três anos, mas não de maneira frequente”, afirma Arco, que já publicou dois livros de poesias – um deles, financiado com a venda de paçocas pela capital.

O escritor e grafiteiro foi autuado no artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais 9.605/1998, que dispõe sobre pichação e preservação do patrimônio. Segundo Arco, suas criações foram interpretadas como agressão ao bem público. “É como se as frases representassem uma depredação. Mas a gente vê que as lixeiras constantemente já estão em péssimo estado. São resíduos sobre resíduos, muito malcuidadas. Não existe uma limpeza e uma preocupação com elas, que praticamente são objetos esquecidos”, questiona, dizendo ver na decisão um gesto arbitrário.

“Ninguém ligava para as lixeiras até o momento em que decidiram me processar. Quem caminha pelo centro vê que muitas estão com os versos sumindo, quase apagados, mas não é por conta de alguma limpeza que já teria sido feita, mas pela própria tinta à base de água, que, aos poucos, se apaga”, frisa ele, que deverá pagar uma multa administrativa à prefeitura, além de prestar serviços comunitários.

Questão. O caso trouxe à tona novamente a discussão acerca do tênue limite entre o grafite e o “pixo”, duas expressões ligadas à cultura urbana e diferenciadas dessa forma apenas no Brasil, onde aceita-se a primeira, quando autorizada, e criminaliza-se a segunda, como atesta a Lei nº 12.408/ 2011.

Isso deixa às instâncias do poder público a palavra final. “No mundo, em termos de legislação, essa divisão não existe. Há um tratamento voltado ao grafite autorizado e, de forma geral, há uma tendência de combater o que é feito nas superfícies da cidade de maneira não autorizada”, explica Felipe Bernardo Furtado Soares, advogado especialista no assunto.

Milene Migliano, ativista e pesquisadora, que em 2013 desenvolveu a plataforma colaborativa Mapa dos Graffitis, com registros de escritas urbanas, recorda o impacto dessa lei a partir dos depoimentos dos artistas de rua de BH. “Conversamos com mais de 50 pessoas, entre grafiteiros e coletivos, e, quando perguntávamos sobre essa lei, eles diziam que a partir daquele momento quem decidia o que era arte ou não era a polícia”, pontua.

Da mesma forma, Arco destaca a maneira como seus versos, que falam sobre situações do cotidiano, passaram por esse crivo. Para ele, embora alguns não pensem assim, os grafites ou seus versos proporcionam à população a oportunidade de ter acesso à arte e à poesia. “O grafite coloca na rua o que muitas pessoas não têm a chance de ver em museus. A cidade é transformada numa galeria a céu aberto”, relata Arco.

Enquanto o grafiteiro recebia a intimação para depor na Delegacia de Crimes contra o Meio Ambiente, iniciava-se na cidade a primeira edição do Circuito Urbano de Arte (Cura), que reuniu artistas do Brasil e do exterior para realizar murais nas empenas de alguns edifícios, numa celebração ao muralismo e à linguagem do grafite. Tal fato revela o modo ambíguo como o poder público lida com a questão. “Às vezes, o poder público considera algo arte e acha que pode ajudar, inclusive colocando-se como uma administração preocupada com a convivência entre a arte e a cidade. Mas, quando uma expressão não é compreendida dessa forma, ela chega a ser criminalizada, como de fato é. Isso é curioso, existe uma certa esquizofrenia”, observa Ludmilla Zago, psicóloga e pesquisadora da pichação. “O poder público não entendeu o que acontece na rua. Existe uma dificuldade grande de entender, e acho que não há o desejo disso”, completa ela.

Para Soares, considerar o “pixo” um crime abarca uma outra questão. “Outras expressões da cultura popular também já foram criminalizadas, como a capoeira e o samba. Então, a criminalização estética esconde muitas vezes uma discriminação classista e racista”, conclui.

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