Sucesso

Cultura em construção

A Obra Bar Dançante completa 20 anos como referência em espaço de estímulo para bandas e movimentos de BH

Dom, 28/05/17 - 03h00

Ao passar por um toldo amarelo, cruzar uma porta de vidro, dar de cara com o personagem Travis Bickle, do filme “Taxi Driver”, e descer alguns degraus, é possível ver o espaço. Teto baixo, palco pequeno, pouca luminosidade e um calorzinho humano. A quem essa descrição não diz nada, certamente não tem a música alternativa e independente na playlist. Os demais já sabem que se refere a A Obra Bar Dançante, casa noturna que, indo na contramão da tendência belo-horizontina de espaços pouco duradouros, completa duas décadas em junho.

Um dos elos responsáveis por fomentar a cultura musical na cidade, o espaço viu nascer bandas e movimentos que marcaram (e marcam) Belo Horizonte. O rock, o indie, mas também o brega e o samba ganharam as madrugadas e levaram gerações a se divertirem ali. Integrante da banda Autoramas, uma das mais bem-sucedidas do cenário independente do país, o músico Gabriel Thomaz já perdeu a conta de quantas vezes se apresentou por lá. “A Obra é referência no Brasil por abrir espaço a bandas e não seguir modismos. Chega aos 20 anos porque investiu em um público fiel como o do rock”, defende.

Mas, se por um lado, os estilos consagrados estão bem representados, há também uma aposta em movimentos que estão surgindo e ainda não encontram respaldo em outras casas. “A diversidade que A Obra abraça em termos de estilos musicais, de bandas e de DJs contribui para a longevidade, porque o perfil não se esgota. Além disso, é um lugar onde as pessoas podem se expressar, há liberdade e representatividade mesmo para as minorias: é um lugar aberto para a ousadia e a diferença”, acredita o professor do curso de Comunicação Social e dramaturgo, Juarez Guimarães. “Nunca vai tocar cover profissional n’A Obra, e nunca iremos atrás de modismos. Pelo contrário, nós lançamos coisas”, completa um dos sócios, Cláudio Rocha.

O músico Guto Borges frequenta o espaço há pelo menos 15 anos e participou de diferentes momentos, como a fundação da banda Dead Lover’s, em 2006. “Na época, se apresentavam n’A Obra bandas do Brasil todo que estavam iniciando, e nosso objetivo era tocar lá também. Tínhamos esse desejo porque era um palco de muita visibilidade no circuito alternativo”, conta. Para ele, o Dead Lover’s ganhou expressão rapidamente nesse circuito graças ao fato de que muitos festivais nacionais usavam A Obra como espaço de seletivas.

Anos mais tarde, Guto e outros músicos deram início a um movimento que chegou ao seu ápice em Minas recentemente: o da valorização da música tida como brega. “Íamos sempre à festa ‘Eu Não Presto, Mas Eu Te Amo” (que ocorria semanalmente) e montamos a Orquestra Mineira de Brega na brincadeira, para tocarmos lá”, explica. Com capacidade para, no máximo, 200 pessoas (o espaço total não ultrapassa os 100 m²), a casa ficou pequena, e o projeto se expandiu por outros bares da capital, se popularizando.

Anterior ao sucesso do brega, A Obra também ajudou a renascer o movimento do samba de raiz, nos anos 90. “Em maio de 1998, eu montei a ‘Uma Noite Pelo Samba’, quando eles me convidaram para fazer algo de música brasileira, o que praticamente não existia em casas da zona sul, mas, claro, já tinha um pessoal da velha guarda fazendo em outros espaços. A partir daí, fiz vários shows, e artistas que tocavam samba se organizaram, como o Copo Lagoinha e o Fidelidade Partidária”, diz o DJ Rafael Mendonça.

Para ele, a casa também foi responsável por mostrar música interessante a diferentes gerações. “A Obra é fundamental para o cenário cultural porque, ao educar essas gerações, criou-se possibilidades de novas coisas nascerem na cidade. Ela foi polo de expansão, criou, fomentou e formalizou muitas coisas que aconteceram nestes 20 anos”, aponta.


Curiosidades d’A Obra

Público. Estima-se que 2 milhões de pessoas já passaram por lá.

Perfil. Jovens entre 25 e 35 anos formam boa parte do público, principalmente artistas e profissionais liberais

Lotação. Em dias de discotecagem, a casa comporta 200 pessoas, mas estima-se que passem até 400 em uma noite.

Bar. A casa oferece mais de 50 rótulos de cervejas especiais e drinks. Para comer, há salgadinhos industrializados.


O que vem por aí

Festa. Para celebrar os 20 anos d’A Obra, a casa se juntou à produtora Quente e organiza o festival Tremor, com novas bandas, algumas históricas na trajetória do espaço. O evento começou em novembro e vai até mês que vem.

Data. Em junho, será a última edição. Serão quatro dias de festa, entre 21 e 24.

Atrações. Já estão confirmadas as bandas Junkie Dogs (MG), Hurtmold (SP), Wander Wildner (RS), Dead Pixels (MG), Young Lights (MG) e Deaf Kids (RJ).


De espaço vazio a porão da música

Sonho de adolescência deu lugar a bem-sucedido projeto de bar e casa noturna

FOTO: FRED MAGNO
Gestão. Os amigos Lino Rodrigues, Marcelo Crocco e Cláudio Rocha são os sócios da casa noturna

Era 22 de junho de 1997 quando A Obra foi aberta a convidados pela primeira vez (ao público, no dia seguinte), mas o projeto do misto de bar e casa noturna começou quando os hoje sócios Cláudio Rocha, Lino Rodrigues e Marcelo Crocco eram estudantes da faculdade de Letras da UFMG. Junto a outros amigos, eles formavam uma banda de punk rock, os Meldas, nutrindo o desejo de ter uma casa onde pudessem tocar quando quisessem e, ao mesmo, abrindo espaço na região Centro-Sul ao autoral, ao indie e ao próprio punk rock, gêneros muitas vezes marginalizados.

“Fiquei desempregado e resolvi colocar o projeto em andamento. Cada um dos sócios iniciais tinha pouco dinheiro para investir, e procurei um lugar que não precisasse de um isolamento acústico, porque isso é caro”, explica Crocco, ao citar o subsolo de um prédio comercial na Savassi, onde a casa está desde o início.

O espaço estava vago após a existência de um autorama, mas o proprietário relutou em alugá-lo ao saber do projeto. Só depois de muita insistência, foi iniciada a primeira das muitas obras pelas quais o espaço passou. “Contratamos um pedreiro e avisamos: nós vamos ser seus serventes, mas ele não botou muita fé”, conta Rocha. Foram seis meses até finalizar o projeto, muito diferente do atual. “Tinha umas mesas e cadeiras no meio. Ao longo do anos, só o palco continua o mesmo”, diz Marcelo.

Já que o objetivo era fomentar a cultura musical da cidade, a primeira festa temática foi a “Terça Sem Lei”, quando músicos autorais se apresentavam. “Tivemos o cuidado de dar o mesmo tratamento para esses novatos que dávamos a bandas consolidadas, porque éramos músicos também”, diz Rocha. “Esse foi um dos segredos para A Obra ser querida por todos”.

Logo o boca a boca entre os músicos se espalhou, fazendo com que a fama do “inferninho” ultrapassasse Minas. “Hoje somos quase um clube, porque os clientes têm sensação de pertencimento”, diz Crocco.

Para os sócios, boa parte do sucesso também se deve ao envolvimento da equipe. Há funcionários que fundaram o local, como o garçom Sebastão Pereira. “Quando houve uma fase ruim, eu fui pro caixa, fazia tudo. Acreditei que ia dar certo”, diz ele.

Os três sócios do local têm outras fontes de renda, mas nem cogitam fechar o espaço. “Temos uma obrigação com a cultura da cidade”, diz Crocco.

FOTO: Fred Magno
Equipe. Francis Ponciano, Sebastião Pereira, Camila Castro e Ivan Bregalda são parte da equipe dos bastidores


Testemunho

Minha vida de operário n’A Obra

Ainda que isso implique uma reflexão sobre o tempo, o passar dos anos, minhas rugas e meus cabelos brancos, devo admitir que fui na inauguração d’A Obra. E fui muitas vezes depois, uma quantidade ridícula de vezes, sobretudo nos primeiros anos dessa história que agora completa duas décadas. Fui dançar, beber, paquerar e essas coisas todas que se fazem na balada. Também assisti muitos shows lá, centenas, talvez.

Já estive atrás das picapes, na condição de DJ, nas festas que eu e mais dois amigos batizamos de “Nonsense Noir”. E já estive sobre o palco, com minha banda, um bocado de vezes – duas delas memoráveis, abrindo shows das Mercenárias e dos Replicantes, verdadeiros heróis da minha juventude. E todo esse tempo de convívio íntimo com o inferninho mais longevo da cidade me deu a clareza de que A Obra é maior que A Obra.

O espaço físico comporta não mais que 200 pessoas, mas a história que a casa carrega consigo extrapola em muito esse limite. Com o Primeiro Campeonato Mineiro de Surfe, A Obra praticamente delineou uma cena de surf music e rockabilly em Belo Horizonte. Com “Eu Não Presto, Mas Eu Te Amo”, jogou luz sobre a música brega, que se espalhou pela cidade na forma de festas e shows temáticos.
Sei também de muitas bandas que foram criadas para tocar n’A Obra. Não seria exagero dizer, portanto, que A Obra alicerçou o surgimento de uma cena de rock autoral em BH. E estimulou o surgimento de outras casas noturnas com propostas similares, como A Autêntica. Descendente de uma linhagem de casas noturnas que passa pelos saudosos Broaday e Squat, A Obra segue adiante, viva e pulsante, como uma referência musical e comportamental que reverbera.
(Daniel Barbosa)

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