Debate

Defendendo a mulherada

Histórico de machismo da música sertaneja é combatido com página na internet e letras de compositoras

Dom, 09/07/17 - 03h00
Cantoras da nova geração participam do novo DVD de Roberta Miranda, “Os Tempos Mudaram” | Foto: GUTO COSTA/DIVULGAÇÃO

O áudio oficial da música postada pela própria dupla no YouTube começa com gritos agudos vindos da plateia. Com mais de 150 mil visualizações, “Carabina”, lançada por Bruninho & Davi em 2015, ameaça: “safada, cachorra, bandida/ dá o fora da minha vida/ antes que eu pegue a carabina/ e te encha de tiro agora”. Essa é apenas uma das muitas canções analisadas pela advogada Camila Queiroz, 25, na página de Facebook Arrumando Letras, que ela resolveu criar após debater com amigas sobre “Vidinha de Balada”, da dupla Henrique & Juliano, gravada neste ano e que já acumula cerca de 300 milhões de cliques na rede. O hit ganhou fama com o refrão “vai namorar comigo, sim/ se reclamar, cê vai casar também”.

“Percebi que essa música era mais um exemplo do discurso reproduzido em várias canções, de que somos ‘sortudas’ e ‘abençoadas’ quando alguém se interessa por nós”, reflete. Na página, Camila modifica letras de músicas como “Ciumento, Eu” e “Senha do Celular” a fim de contestar o machismo. “Para muitos, a violência do ciúme é sinônimo de amor e cuidado”, diz. Na opinião de Gustavo Alonso, estudioso do tema e autor do livro “Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira” – fruto de sua tese de doutorado pela Universidade Federal Fluminense –, o machismo é uma herança social do país que não se restringe à música sertaneja. “Todo gênero musical associado à ruralidade contém algo de machismo em sua história. Basta lembrar Luiz Gonzaga e sua frequente apologia ao macho nordestino. Mais do que denunciar o machismo, o interessante é perceber como esse tema está sendo colocado em pauta, o que não acontecia até bem pouco tempo. É preciso ir além da análise das letras e perceber como essas canções são reincorporadas pelos ouvintes e que peso têm na trajetória destes artistas. Se há canções que ainda ecoam o machismo, há outras, às vezes cantadas pelos mesmos artistas, que vêm trazendo valores que não eram tão comuns na música sertaneja. Esse jogo e como o público responde a ele e o reincorpora é o que há de interessante nessa disputa”, sustenta.

Sem foco específico em um gênero, Camila problematiza a questão para além de autores e intérpretes. “As letras são reflexo da sociedade em que vivemos, que ainda é puramente patriarcal. Eu não julgo os intérpretes na página, eu arrumo a letra. Não sei quais foram as motivações daquela pessoa em cantar aquilo; sua vivência, sua educação ou até agradar a um público específico que consome esse tipo de música. Não levo isso em consideração, não ataco o cantor. Dou foco a problemáticas contidas na letra. Todos os gêneros e estilos contêm músicas com letras machistas. Para mim, foi um baque quando notei esse conteúdo em ‘Run for Your Life’, dos Beatles”, admite.

Réplica. Outra iniciativa de Camila foi divulgar canções que respondem a esse histórico de misoginia, sob o nome de “Letras para Amar”. “Coitado”, da cantora Naiara Azevedo, 27, surgiu como uma paródia para “Sou Foda”, do grupo Avassaladores, bisada em shows por Gusttavo Lima, Luan Santana e Munhoz & Mariano. A canção original diz: “na cama te esculacho/ na sala ou no quarto/ no beco ou no carro/ eu sou sinistro/ melhor que seu marido”; enquanto a réplica de Naiara proclama: “defendendo a mulherada e dando sequência no pente/ coitado, se acha muito macho/ sou eu que te esculacho/ te faço de capacho/ se acha o bicho/ nem era tudo aquilo que contava pros amigos/ eu sempre te defino/ desanimador, prepotente e arrogante”. “Ter mulheres compondo e cantando é necessário, mas é preciso que elas estejam também atrás das câmeras, na presidência das gravadoras, trabalhando na indústria fonográfica”, defende Camila. Já a cantora Paula Fernandes, 32, vê com otimismo a cena. “O momento é outro, e a gente ganha espaço a cada dia”.

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