Artes cênicas

Descolonizando o teatro

Reflexões sobre o teatro negro a partir dos espetáculos apresentados na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo

Dom, 26/03/17 - 03h00
“Black Off”. “Durante duas horas, brancos e negros precisavam conviver, sem que nenhum deles se anulasse”, José Fernando, sobre o espetáculo da sul-africana Ntando Cele | Foto: Guto Muniz/ Divulgação

Antes, é preciso dar um passo atrás para entender o que se está chamando de teatro negro como uma definição política de lugar, para, em seguida, traçar pontos de reflexão a partir dos espetáculos que compuseram o eixo de recorte racial da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, realizada de 14 a 21 de março.

"Há várias definições e cada grupo define isso a partir da sua experiência", afirma José Fernando Azevedo, filósofo, diretor e dramaturgo, dedicado à pesquisa teatral. "O que tem me interessado é entender que isso que estamos chamando de teatro negro é, na verdade, mais do que uma maneira de compreender a situação no negro na sociedade brasileira, mas de entender o mundo contemporâneo. Isso parte de uma discussão trazida pelo filósofo, de Camarões, Achille Mbembe, que vai dizer que estudar os negros que aparecem na história é entender  a formação do capitalismo moderno. No processo que leva à escravização, o capitalismo constrói essa figura do negro como uma espécie de outro. A questão é que, de tempos em tempos, o capitalismo inventa o negro e, a cada história, ele aparece como uma ameaça, um problema. Como uma espécie de outro, ele pode ser desprovido da sua humanidade", afirma.

"Por outro lado, Mbembe vai propor a ideia de um devir negro que é a possibilidade política de identificar na margem outro tipo de convívio, outra forma de fazer política. Me interessa o teatro negro como um comentário desse devir negro do mundo. É a necessidade desse outro se produzir politicamente como uma alternativa de humanidade. Isso vai implicar na presença do negro da cena, na politização desse corpo negro e na capacidade de reconhecer nesse negro uma experiência complexa da sociedade", completa.

Espetáculos

Isso tudo vai levar também à criação de um tipo de teatro próprio como é apontado no espetáculo “A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa”, dirigido por Eugênio Lima. “São várias camadas, mas podemos resumir dizendo que o teatro branco é um dispositivo e o teatro negro, na medida em que se inscreve nesse dispositivo, deve subvertê-lo, seja dramaturgicamente, na relação com o público, em um aspecto formal que não podemos negligenciar", comenta Azevedo. 

"Outra coisa é a ideia de que o branco é uma metáfora do poder. Portanto, esse teatro branco da revolução é o teatro branco na democracia liberal. É um teatro dos falsos conflitos porque os reais não podem vir à tona, eles estão submergidos. E, em alguma medida, essa noção também quer dizer de algo que já é evidente para todos nós, que a democracia liberal não dá mais conta dos conflitos reais", completa o pesquisador.

Ao longo de 2h45, via-se corpos negros em um jogo pela sobrevivência, numa disputa de discursos em luta pelo reconhecimento, pelo direito à vida, pela cidadania. A presença combativa daqueles corpos jovens e negros que caminhavam pela plateia trazia o receio, era violento, trazendo à tona outra noção, a de que o processo de descolonização será violento. "O que chamamos de violência é, na verdade, a escuta de uma voz que antes não era escutada. O fato de termos um negro falando em cena já parece como violência e isso revela o tamanho do nosso problema", pontua. 

Azevedo remete o raciocínio a Sartre que vai perguntar "O que é que vocês esperavam quando tiraram a mordaça que fechava essas bocas negras?".  "O que vem, se não, o som de um grito? Parece que estamos chamando de violência a explicitação de um corpo que vem à cena pra contar sua história que não é morna. Na tentativa desse corpo de elaborar isso, de dar forma a isso, o primeiro impulso é imitar uma violência que lhe foi infligida".

Embora colocando uma perspectiva europeia em choque com a cultura periférica brasileira, um ponto que gerou o primeiro estranhamento quanto à peça diz respeito ao texto em que foi beber, “A Missão - Lembranças de Uma Revolução”, do alemão Heiner Müller. “Essa discussão do autor ser branco reduz a dimensão do problema. O texto é o momento em que Müller reconhece o limite da experiência dele como intelectual europeu diante do colapso da civilização europeia. Ao falar da revolução haitiana, ele vai expor que os negros haitianos imaginaram que estavam continuando a Revolução Francesa, mas quando Napoleão manda o exército pro Haiti pra controlar a Revolução Negra, eles entendem que a Revolução Francesa era europeia e não da humanidade para uma nova humanidade”, pondera. “Essa percepção é suficiente para que ‘A Missão...’ sirva como material para se discutir alguma coisa”.

Racismo

A discussão racial na MITsp se fez tão polifônica quanto polêmica, em especial, com a presença do espetáculo “Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol”, escrito por Alexandre Dal Farra. A peça parte do desejo de artistas brancos se confrontarem com o racismo, inicialmente, a partir das provocações de alguns artistas e pensadores negros. O processo, no entanto, evidenciou que a primeira proposta de texto era tão racista quanto ao que se propunham criticar. Diante do retorno, o autor partiu, então, para a revelação, em cena, do processo vivido pelos artistas, expondo a inabilidade de lidar com esse outro. A peça, no entanto, ao ficar entre as reflexões do branco sobre sua branquitude, não alcança o outro, aquele sobre quem fala, aquele que justifica a existência do espetáculo.

"É um dos trabalhos que mais tem consequências de uma abertura de olhar, uma espécie de sinal de alerta e porque temos um atraso em relação ao tempo que os brancos têm investido para lidar com uma coisa que estrutura os nossos privilégio. Chegamos tão atrasados, num nível precário de elaboração se comparado com o que os negros já conseguiram elaborar porque para eles é uma questão de sobrevivência. Para nós, que sempre nos colocamos como bastião do olhar crítico, deixamos isso passar ao largo dos nossos problemas. Olhar pra plateia e perceber a ausência de negros na sala. Como nunca botamos lente de aumento nessa situação? Mas é uma peça que é um primeiro passo, muito precário e incipiente ainda", comenta Janaína Leite, atriz e diretora do espetáculo ao lado de Dal Farra.

"É uma tentativa de criar um lugar de percepção, fundamentalmente, para os brancos. Fazer a peça é a prova do meu privilégio. Ao mesmo tempo, seria solução fácil me retirar dessa seara crítica. Interessa que os brancos façam esse movimento? É só na seara da contradição que podemos pensar nisso. Não acho que a gente se redime, mas a peça admite esse fracasso de falar sobre o outro e com o outro. É muito confortável não conhecer o outro. Por isso, a peça é tateante, está no terreno do desconhecido. Ela não é um passo à frente, é um passo atrás", completa a diretora.

Ainda sem ver o espetáculo, José Fernando, que foi um dos provocadores do grupo no início do processo, aponta para o risco da reposição daquilo que se quer criticar. “Assim como o teatro negro está forçando a elaborar a figura crítica do branco, ainda a partir da afirmação do negro, esse branco precisa ser capaz de reconhecer de outra forma a figura do negro. Tenho a impressão de que uma peça sobre branco deveria resultar no esforço de pensar como negro. É uma aventura arriscada. Mais do que falar do branco, é preciso falar de como o racismo é produzido. É complexo porque pressupõe pensar com a cabeça do outro, de produzir uma experiência de fato em que o branco se torne outro. É fazer uma pergunta complexa. O que nós somos capazes de imaginar juntos? Você reconhece esse que vem junto? Sem essa pergunta, é chover no molhado", problematiza.

Já em “Black Off”, espetáculo criado pela sul-africana Ntando Cele, a atriz, de peruca loira e pele pintada de branco, ironiza e debocha da imagem do branco, em uma reprodução de falas racistas tão costumeiras e naturalizadas. O interessante é ver o branco da plateia rindo de sua própria falência. “Eu decidi abordar o racismo com humor e leveza. Ninguém escuta quando você gritar ou faz pregação. Rir sobre si mesmo pode ser um passo na direção certa. É uma das muitas estratégias para implementar a mudança. Eu ouço aqueles risos e espero que parte deles seja fruto da vergonha. O show é desconfortável e o riso é também uma reação a isso”, afirma Ntando.

O espetáculo, no entanto, cria outros momentos em que o negro toma o lugar de outra forma, dando a ver sua pele e seus traços, em uma postura empoderada e de combate em um show punk que Ntando faz para encerrar o espetáculo. (No próximo domingo, o Magazine publica uma entrevista com a atriz).

"Em Black Off, eu vi uma capacidade de se mover em relação ao branco. Durante duas horas, brancos e negros precisavam conviver, sem que nenhum deles se anule. Isso é tenso porque não se trata de mistura e nem de tolerância, mas do que é preciso para que esses dois corpos convivam", comenta Azevedo. "Esse teatro vai radicalizar sua experiência na medida em que for capaz de elaborar a imagem do branco na cena. Ainda estamos , como em 'A Missão', afirmando a presença do negro. O próximo passo no processo de elaboração é ser capaz de produzir uma imagem crítica do branco. Não numa chave psicanalítica ou do apontado do branco racista, etc, mas entender como se dá efetivamente as relações do branco, portanto, as relações de poder com esse outro que ele nega que chamamos de negro".

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