“Trilogia da Abnegação”

Desestabilizando consensos

Escritas por Alexandre Dal Farra, peças abordam contradições e conflitos éticos da trajetória da esquerda no poder

Sex, 24/03/17 - 03h00
Poder. Trilogia discute a realidade política brasileira e põe em questão a crescimento e o declínio do PT | Foto: Jennifer Glass/ Divulgação

Depois da recente estreia de “Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol”, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, em um trabalho que aborda o racismo, o grupo paulistano Tablado de Arruar retorna à “Trilogia da Abnegação”. Os espetáculos, que revelam forças e contradições da trajetória da esquerda no poder, serão apresentados desta sexta-feira (24) a domingo (26), na Funarte.

Assim como em “Branco”, a trilogia também aponta para assuntos que, por si só, geram incômodos. “É a tentativa de fazer que o teatro seja um espaço que traga questões relevantes e que geram dissenso. Tem a ver com os lugares que me movem também, que estão em pauta e que fico querendo me confrontar com eles. São assuntos polêmicos, mas existe um certo consenso em torno deles. Como no caso do PT. Ou você é contra, ou é a favor, ou detesta um petralha, ou defende tudo o que vem do partido. O que mais me seduz nesses sistemas é tentar trazer contradições”, afirma o dramaturgo Alexandre Dal Farra, que também assina a direção da trilogia com Clayton Mariano.

Pensando no público e no teatro político, Dal Farra problematiza uma fala circunscrita aos pares. “Falamos para nós mesmos, e aí acho ainda mais importante colocar as coisas em xeque, nos colocar em movimento”.

A escrita da trilogia iniciou-se em 2013, antes mesmo das jornadas de junho, mas já motivada por todo o clima explosivo que se refletiu na tomada das ruas. O contexto de criação das peças rapidamente se alterou, mas olhar para o que constitui o trabalho, hoje, após o impeachment e as primeiras ações do governo que se seguiu, dá pistas que talvez contribuam para elucidar o momento presente.

“A sensação de rever a trilogia é que voltamos a um processo que acabou de passar e que, de certa forma, gerou o que estamos vivendo agora. É como se, já com calma, fosse possível ver as células de um corpo em decomposição, que agora está morto. À época das estreias, os espetáculos tinham outro efeito, o de capturar o momento, aquilo que estava em acontecendo”, comenta Dal Farra.

Embora a trilogia faça apontamentos críticos sobre aspectos da trajetória do Partido dos Trabalhadores, ela se inicia, em “Abnegação I”, tratando a questão política de forma mais ampla. “A peça traz essa sensação de que tudo acontece na ordem do poder, e, por isso, ali, poderíamos estar falando de qualquer partido. Você nunca sabe o que realmente está acontecendo, a que os acontecimentos se referem, e, no fim das contas, tanto faz. A questão são as relações que giram em torno disso e se repetem na nossa história política”, observa.

Já no passo seguinte, em “Abnegação II – O Começo do Fim”, tido como o mais polêmico da trilogia, os nomes são dados aos bois. O trabalho parte, de forma explícita, da morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel, descortinando nebulosidades que envolvem o assassinato. “Existia um papo de que não era hora de tocar nesses assuntos porque aquilo daria munição para a direita. A meu ver, isso impediu a autocrítica, muita gente foi calada. As pessoas que poderiam ter contribuído foram expulsas do PT porque se negavam a fazer o jogo do capital. E eu queria questionar isso. O trabalho não serviu de munição para a direita, aliás, a direita quer que o teatro morra. Mas eu queria pôr isso em questão. Por que nós não podemos discutir essas contradições entre nós?”.

Do ponto de vista da linguagem, Dal Farra toma “Abnegação II” como o espetáculo mais provocativo da trilogia. “Ali trabalhamos num sentido mais unilateral, e, por isso, ele é violento, tanto nas cenas de violência mais explícita quanto na forma explosiva de contar a história. É uma violência da palavra”, conta.

E, por fim, a trilogia fecha com “Abnegação III – Restos”, que estreou em junho de 2016, já diante da realidade do impeachment de Dilma Rousseff da Presidência. “Enquanto estávamos ensaiando, ainda havia chance de Dilma não ser deposta. Ainda havia dúvida se era do interesse das elites chegar às vias de fato do impeachment. As peças, então, estão nesse lugar de investigar possibilidades para entender o que foi essa queda”, pontua.


Trilogia

“Abnegação I”
Nesta sexta-feira (24), às 21h

Em uma reunião fechada, cinco integrantes de um partido político discutem um acontecimento do passado que nunca chegamos a saber qual é.

“Abnegação II – O Começo do Fim”
Neste sábado (25), às 21h

A peça expõe com violência a trajetória contraditória de um partido de esquerda que, em um momento de ampliação de seu alcance, cede à dinâmica criminosa e cínica que organiza e estrutura o poder no capitalismo.

“Abnegação III – Restos”
Neste domingo (26), às 19h

A obra mostra cinco cenas paralelas que se passam em casas de diferentes extratos sociais, no mesmo dia. Todas as cenas têm conexões com forças que se ligam, direta ou indiretamente, ao Partido dos Trabalhadores.

Agenda. Todos os espetáculos serão apresentados na Funarte (rua Januária, 68, centro). Os ingressos, para cada uma das peças, custam R$ 20 (inteira). 

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