Debate

É para rir, mas pode matar 

O ataque terrorista ao “Charlie Hebdo”, em Paris, reacendeu a antiga e polêmica discussão: o humor pode ter limites?

Dom, 18/01/15 - 03h00

O cartunista Ique nunca pensou que um lápis de cor pudesse matar alguém. Mas Laerte adverte que tudo depende de que lado da piada você está. Ainda assim, Eloar Guazzelli crava que se você pensar no outro, o humor morre. Mas Carlos Latuff rebate dizendo que a tragédia de alguém nem sempre é a graça de terceiros. Ficou confuso? Normal. Porque os ecos vindos de Paris em 7 de janeiro de 2015 não trouxeram certezas sobre o humor, mas, sim, várias interrogações camufladas de pontos finais, divergentes entre si, como a lógica de confundir para explicar cantada por Tom Zé.

É que o assassinato de quatro cartunistas em um massacre que deixou outros oito mortos na sede do jornal “Charlie Hebdo”, gerando a maior passeata da história da França com a presença de 3,7 milhões de pessoas entoando o lema “Je suis Charlie”, reacendeu o barril de pólvora da discórdia com a velha pergunta: o humor deve ter limites?

Baseado nesse dilema, o MAGAZINE questionou alguns dos principais cartunistas e chargistas do Brasil para comentarem como a graça dos cartoons pode levar ao choro e ao ódio; ou, por outro lado, como o riso contribui para superar a dor e a tristeza explícitas num desenho; e como a contradição se mantém inerente aos rabiscos dos cartunistas, fundamentais para alimentar e provocar a sociedade sobre aquilo que ela não vê por conta própria.

Logo após o atentado ao “Charlie Hebdo”, o humorista francês Dieudonné M’bala foi detido por apologia ao terrorismo por se solidarizar com Amédy Coulibaly, o responsável pelo ataque ao mercado judeu em Paris, em que quatro pessoas morreram. Em seguida, o papa Francisco declarou que “não se pode ridicularizar a fé” e que “a liberdade de expressão tem limites”. No Brasil, um dia antes do atentado ao “Charlie Hebdo”, o humorista Renato Aragão causou polêmica com a divulgação de sua entrevista à revista “Playboy” de janeiro, por afirmar que “essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam”, em alusão às piadas dos Trapalhões nos anos 80 e 90.

A cartunista Laerte Coutinho, autora de personagens memoráveis como Los Três Amigos, Piratas do Tietê e Hugo Baracchini, acredita que é preciso analisar cuidadosamente o contexto em que o humor ganha repercussão e soa ou não engraçado.

“O Renato é uma figura respeitabilíssima, mas ele está enganado. Ele não está levando em conta que veados e negros não podiam se manifestar, não tinham força política e contexto social. Houve uma mudança, sim, nesse sentido (no Brasil). E isso serve para clarear uma coisa muito importante. Humor é contexto sempre. É preciso levar em conta o país onde a pessoa está, o público para que se dirige, a época. E muito mais”, avalia Laerte.

O cartunista Caco Galhardo, ex-colaborador do programa humorístico global “Casseta e Planeta” e autor das tirinhas “Os Pescoçudos”, exemplifica como o contexto interfere diretamente na assimilação humorística por parte do público. Ele lembra que pouco depois do atentado de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center, o humorista norte-americano Gillbert Gottfried fez uma piada sobre a tragédia em uma apresentação de stand-up e foi vaiado. “Ficou claro então que era cedo demais para rir da catástrofe ou que fazer piada com o atentado nunca seria uma boa ideia”, ilustra.

“É uma linha muito tênue. Nos anos 80, o pessoal do Casseta e Planeta lançou um vinil intitulado ‘Preto com um buraco no meio’. Pra mim, uma piada genial, um disco de vinil é exatamente isso. Mas a comunidade negra se sentiu ofendida e processou os caras. Quem é que estava certo? Se a história fosse hoje, já seria assimilada? A única coisa que eu sei é que esses limites devem ser sempre testados”, completa o cartunista.

E é justamente a partir desses testes sugeridos por Galhardo que o humor mexe na ferida alheia, muitas vezes de forma séria para um dos lados. O cartunista e militante político Carlos Latuff é atrelado à causa palestina desde a década de 90, além de também fazer diversas críticas à polícia brasileira em suas charges. Após o ataque em Paris, ele publicou cartoons que criticam abertamente o “Charlie Hebdo”, pontuando existir uma diferença entre ofensa e liberdade de expressão, além de um limite para humor, segundo ele.

“Esse discurso da liberdade de expressão tem dois pesos e duas medidas. Um cartunista chamado Sine, do ‘Charlie Hebdo’, fez uma charge do filho do Sarkozy, que teria se convertido ao judaísmo ao se casar. O chargista foi acusado de antissemitismo. O editor do ‘Charlie’ na época (Philippe Val, em 2009) exigiu que ele pedisse desculpas. Ele disse: ‘eu não peço desculpas nem que corte as minhas bolas’. E foi demitido. Na Europa você não pode fazer charge com a religião sem sofrer retaliação. Existe limite”, opina Latuff.

FOTO: REPRODUÇÃO INTERNET
Protesto. Carlos Latuff condenou o ataque, mas é contra a linha editorial do “Charlie Hebdo”



CENSURA E LIBERDADE. Limite que nem todo mundo considera saudável para o riso. O chargista Duke, de O TEMPO, é assertivo ao afirmar que “nunca vai haver limite para o humor porque a natureza do humor é falar sobre o que o senso comum não permite. E o senso comum não tem graça”, ironiza. “Cada humorista tem sua personalidade. Eu não vou fazer uma charge homofóbica porque eu não sou, mas se o (deputado Jair) Bolsonaro fosse humorista, ele faria. A liberdade de expressão é um direito de todos, não pode variar de acordo com o discurso. Aí a gente cai numa armadilha muito perigosa porque os discursos mudam. Há um século, a maioria da sociedade pensava que a escravidão era normal. E se alguém fizesse uma charge dizendo o contrário naquele tempo?”, diz Duke.

Da mesma forma, o chargista Laílson, um dos fundadores da Associação de Cartunistas do Brasil, observa que a lógica deve ser invertida para que o humor seja assimilado. Ele se lembra de quando fez uma charge para o Dia Mundial da Aids e desenhou Deus entregando uma camisinha a Adão. Em menos de um dia, recebeu inúmeras críticas de leitores que consideraram a ilustração uma “blasfêmia”, segundo o próprio cartunista.

Nem por isso ele considera que esbarrou em um limite. “Se a gente precisar de autorização para fazer piada, para rir, a gente tem que estar num manicômio. É só você inverter as coisas para ver como é absurdo. Imagine uma banda chamada Raça Branca. Seria taxada de nazista, fascista, mas pode ser Raça Negra, que é considerada normal. É isso que o humor faz, coloca o reflexo distorcido e caricato para que se perceba o que está acontecendo”, diz.

O cartunista gaúcho Eloar Guazzelli vai além. Admirador do “Charlie Hebdo”, ele chegou a dividir a mesa da Bienal de Quadrinhos de 1993 com Wolinski – cartunista morto na ação terrorista provocada por dois jahistas. Não é necessário dizer que ele ficou em choque com o atentado em Paris, mas não escreveu uma linha sequer nas redes sociais julgando a publicação francesa. Para o humorista, o calor dos acontecimentos pode atrapalhar as interpretações e é preciso se colocar no lugar do outro, ainda que hajam dúvidas e incertezas sobre respostas que talvez nunca sejam respondidas dentro do universo humorístico.

“O Barão de Tareré (pioneiro do humor brasileiro) era um gênio. Uma vez, levou uma surra em casa em um assalto e quase o mataram. O que ele fez? Colocou uma placa na porta com os dizeres: entre sem bater. Ou seja, é muito fácil julgar e se rebelar contra os outros. O Barão inverteu essa lógica. E o humor é perfeito como essa ideia filosófica, só que ele opera em cima de um mundo extremamente imperfeito. Ofenda o seu próprio valor e depois a gente discute, todo mundo tem calcanhar de Aquiles. Acredito que todas as questões que se colocam em relação ao humor e liberdades criativas são corretas, apesar de divergentes, mas elas existem em um mundo absolutamente bárbaro e hipócrita e assimétrico. Há de se saber disso”, diz Guazzelli.

Homenagem
Livro.
Apesar de várias homenagens terem surgido nas redes sociais em solidariedade aos 12 mortos no ataque ao jornal francês “Charlie Hebdo”, algumas delas podem se concretizar como registro histórico. É que o editor de quadrinhos André Conti tem a ideia de lançar um livro com vários cartoons de chargistas brasileiros em reverência ao periódico francês. A assessoria de imprensa da Companhia das Letras confirmou que existe a ideia, mas informou que não há mais detalhes por enquanto.

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