Entrevista

Em conexão com os Krahô

Em parceria com João Salaviza, a cineasta Renée Nader dirigiu 'Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos'

Dom, 22/04/18 - 03h00

Renée Nader

Cineasta

Em parceria com o português João Salaviza, a paulistana dirigiu o filme “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, que terá sua estreia mundial na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, prevista para começar no dia 8 de maio. Na entrevista, ela comenta o processo que deu origem ao filme, a seu ver, capaz de despertar outros olhares para as questões indígenas.

“Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos” foi rodado na aldeia Pedra Branca, onde reside a população indígena Krahô, no Estado do Tocantins. Como se deu sua aproximação com essas pessoas?

Em 2009, eu fui, com um amigo, filmar um documentário sobre uma festa de fim de luto de um índio que teria sido uma liderança Krahô. E eu sou fotógrafa. Quando ele contou que estava indo fazer esse filme, naquele momento eu falei que sentia que tinha que ir com ele, e aquilo virou completamente a minha cabeça. Eu passei a buscar formas de continuar trabalhando lá. Então, foram vários projetos que nós fomos desenvolvendo junto com um grupo de jovens da aldeia. Eram atividades ligadas ao audiovisual e à fotografia. Nós levamos um projetor, passávamos filmes na aldeia à noite e víamos como eles estavam querendo muito se relacionar com aquilo de maneira mais intensa. Todo mundo estava muito entusiasmado. Quando voltei para São Paulo, decidi escrever um projeto pequeno para começar essa relação, e ele acabou sendo muito bem recebido nas aldeias Krahô. A partir disso, eu passei a escrever propostas e fazer esses trabalhos. Atualmente, inclusive, já existe um grupo de cinegrafistas na aldeia. Foi a partir daí que começamos a ter vontade de fazer esse filme, que parte de algo que realmente aconteceu com um dos alunos de uma das minhas oficinas.

Esse projeto, de alguma forma, se relaciona com o Vídeo nas Aldeias, fundado pelo cineasta Vincent Carelli?

O trabalho do Vincent é a maior inspiração para todo mundo que trabalha com o cinema e os indígenas no Brasil. O Vídeo nas Aldeias é um projeto que eu já conhecia, achava muito legal, mas fui procurar também outras experiências, e acho que acabei misturando um ponto do Vídeo nas Aldeias com um programa catalão, que é ligado à Cinemateca Francesa e que tem a ver com o ensino de cinema nas escolas para crianças desde muito cedo.

O filme narra a história de Ihjãc, um jovem Krahô que decide realizar a festa de fim de luto de seu pai, após encontrar-se com o espírito dele. O ator que vive o protagonista participou dessas oficinas?

Ele era criança na verdade, quando eu fazia essas oficinas, e nunca participou delas. Mas nós nos apaixonamos pelo Ihjãc no momento em que começamos a imaginar o filme, e eu gostava muito da cara dele, quando tinha ainda 13 anos. Ele era pequeno, mas eu gostava de suas expressões. Então, quando realmente decidimos filmar, eu e o João resolvemos fazer um curta, como um ensaio, para vermos como ele lidaria com aquilo. A ideia era testar a relação dele com a câmera para saber se poderíamos filmar depois em 16 mm. E a experiência foi realmente muito boa. Foi muito fácil trabalhar com ele, e acabou ficando tudo pronto.

O primeiro trabalho que você produziu na aldeia Krahô foi um documentário. Esse filme, a seu ver, aproxima-se mais da ficção?

Não sei. Não gosto de falar nesses termos porque eu acho que essa conversa é um pouco ultrapassada. O cinema permite vários tipos de aproximação, e o “Chuva”, se você olhar, talvez seja uma ficção, mas ao mesmo tempo aquelas pessoas estão ali com seus núcleos familiares que se mantêm em torno daquelas histórias que estamos contando. Talvez elas não tenham acontecido da forma como estamos mostrando, porque o filme faz uma reorganização daqueles elementos. O cinema faz isso, tanto o documentário quanto a ficção. Ele reorganiza a realidade, e eu, de fato, prefiro não falar se o filme e um documentário ou uma ficção.

Entendo. É que para nós o encontro do personagem com o espírito de seu pai pode parecer algo próximo do universo fantástico, mas, de fato, no contexto das crenças dos indígenas, acredito que isso seja incorporado ao cotidiano.

Sim. Nós tínhamos essa grande preocupação em plasmar isso na imagem: a relação das personagens com esse mundo imaterial e invisível está presente de maneira corriqueira na vida deles. Aquilo é tão normal que a forma como eles contam esses encontros, que chamam de encontros mágicos, no fundo, é só mais um encontro e tem a ver com esse olhar horizontal para todas as coisas. Eles olham para as pessoas, para os animais, para o espírito do pai que morreu da mesma forma, enfim, tudo está para eles no mesmo plano. Então era superimportante para nós que essa relação ficasse muito clara. Vamos ver, mas acho que o resultado deu certo.

Como vocês receberam a notícia de que o filme havia sido selecionado em Cannes?

O João já teve um curta-metragem selecionado em Cannes, em 2009, “Arena”, e que, inclusive, ganhou a Palma de Ouro (prêmio concedido ao melhor curta-metragem). Mas esse é o meu primeiro filme, fomos só nós dois para o meio do mato filmar durante quase um ano. Eu não tinha absolutamente nenhuma expectativa de o filme ser selecionado. Foi uma surpresa. E acho que a gente ainda não teve muito tempo de processar tudo isso. De certa forma, eu acho que a seleção do “Chuva” mostra que o festival está se abrindo para outros olhares e outras formas de fazer filmes. E isso é bastante surpreendente. Acho que a seleção deste ano vai trazer outras surpresas também.

Além desse olhar horizontal lançado pelos indígenas aos elementos que dão sentido a suas vidas, quais outros temas o filme contempla, a seu ver?

Eu acho que, à primeira vista, esse é um filme que trata do dilema desse adolescente, que tem que realizar a festa que o espírito de seu pai o encarregou de fazer. Mas, ao mesmo tempo, ele está passando por um estágio de transformação para tornar-se pajé. Quer dizer, ele está sendo acossado por um mestre feiticeiro que está querendo levá-lo para esse caminho, mas o menino não está muito dentro desse processo, e expressa uma certa negação no que diz respeito a concluir a passagem para essa etapa. Isso é um dos aspectos que podemos aferir vendo o longa. Depois, o filme também acaba tocando em outras questões que são superimportantes, e, às vezes, você pode até se perguntar: “como aquele menino ainda vive naquele contexto que é tão incrível, mas que, ao mesmo tempo, há um Brasil lá fora que não é nada amigável com os povos indígenas?”. Essas coisas vão se cruzando no caminho desse personagem, e, enfim, no decorrer da história, todos esses conflitos vão se tornando mais evidentes.

Vocês têm previsão de quando o filme poderá ser visto no Brasil?

Nós ainda não temos, mas gostaríamos muito. Estou com muita vontade de estrear o filme no Brasil, porque acho que ele vai abrir uma porta de diálogo para várias coisas que eu acho que são muito importantes nesse momento que estamos vivendo no país, infelizmente. Há muita discussão ainda a ser feita, e a questão dos indígenas precisa ser melhor escutada. Eu espero que, com esse filme, nós possamos abrir essa porta, essa janela de diálogo em outros contextos que não são os da antropologia nem da etnografia, e que outras pessoas possam ver e estar falando sobre as questões indígenas, que são muitas.

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