'A Trama'

Longa de Laurent Cantet foi exibido em Cannes

A recente avalanche de escândalos de assédio e abuso sexual faz de 'A Trama' a estreia mais acidentalmente pertinente da semana

Qui, 23/11/17 - 02h00

Com a recente avalanche de escândalos de assédio e abuso sexual, uma das repercussões mais complexas diz respeito à possibilidade, e mesmo à moralidade, de se separar arte e artista. Até que ponto é possível enxergar na onipresença de romances entre homens mais velhos e jovens garotas na obra de Woody Allen, nas várias cenas de masturbação na série “Louie”, ou na obsessão do personagem de Kevin Spacey em “House of Cards” com homens mais novos, uma mera coincidência – e não uma projeção dos aspectos mais questionáveis de seus criadores?

A atualidade dessa questão faz de “A Trama” a estreia mais acidentalmente pertinente da semana. Novo longa do diretor francês Laurent Cantet, vencedor da Palma de Ouro por “Entre os Muros da Escola”, a produção promove não só uma instigante e sensual reflexão metalinguística sobre os limites da arte no retrato da violência, mas questiona em que momento os aspectos mais perturbadores de uma obra deixam de ser um mero exercício criativo e passam a ser uma manifestação dos distúrbios de seu criador.

O filme acompanha uma oficina de escrita criativa ministrada pela autora parisiense Olivia Dejazet (Marina Foïs) durante um verão em La Ciotat. Trabalhando com um grupo de jovens bastante diverso, ela propõe a elaboração de um romance policial envolvendo o histórico operário da cidade. Mas as discussões se tornam acirradas com as intervenções de Antoine (Matthieu Lucci), jovem atraente e inteligente, mas com afinidade por extrema violência e ideais de extrema direita que ele usa para provocar os colegas.

Mesmo com um bom elenco coadjuvante, “A Trama” se alicerça na relação de atração e repulsão que se estabelece entre Olivia e Antoine. Reconhecendo o talento do rapaz e o valor das discussões que ele provoca no grupo, a escritora tenta ao máximo não censurar as opiniões mais controversas dele para não aliená-lo. Mas essa permissividade alimenta as ofensas do garoto contra seus colegas negros e árabes, tornando a situação cada vez mais instável e forçando a autora a se insinuar na vida do aluno para tentar entender em que medida ele realmente acredita no que diz, ou se suas manifestações são apenas um personagem criado para chamar atenção.

Discussão. Cantet usa o estudo desses dois personagens para refletir sobre a estranha atração que imagens e discursos de violência exercem sobre todos nós – e a responsabilidade da arte e do artista ao explorar essa sedução. E o cineasta torna seu filme ainda mais pertinente ao traçar um paralelo entre esse imaginário onipresente da violência e a recente proliferação dos discursos de ódio da extrema direita no mundo todo: até que ponto limitar essas falas é censura ou uma obrigação moral para impedir que elas contaminem mais pessoas?

A verborragia com que “A Trama” discute essas complexas questões, em cenas longas e densas, pode incomodar alguns – assim como o epílogo desnecessário. Mas elas funcionam graças ao bom elenco e ao talento dramatúrgico de Cantet, que impedem que o filme soe discursivo ou didático. Assim como em “Entre os Muros”, cada jovem soa como uma pessoa de carne e osso, e a montagem de Mathilde Muyard dá um ritmo crescente e envolvente aos embates do grupo.

E no comando dessas cenas, estão as ótimas atuações de Foïs e Lucci. Assim como já havia feito em “Polissia”, a atriz expressa no silêncio pungente de seu rosto a admiração ambivalente e a repugnância de Olivia por alguém que talvez tenha a potência de criar algo que ela nunca teria coragem. E ele, filmado pela fotografia banhada de sol de Pierre Milon como esse corpo tenro e irresistível da juventude, é a encarnação dessa violência que Cantet considera eticamente deplorável, mas esteticamente arrebatadora. Um demônio sedutor que devíamos ignorar, mas do qual não conseguimos desviar o olhar – uma imagem-provocação questionando nosso papel na cultura da violência que nos sufoca. 

---

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo mineiro, profissional e de qualidade. Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar.

Siga O TEMPO no Facebook, no Twitter e no Instagram. Ajude a aumentar a nossa comunidade.