Memória

Meio século de uma noite histórica

Há 50 anos, um festival da Record consagrava Edu, Caetano, Gil e Chico

Sáb, 21/10/17 - 02h00

SÃO PAULO. Em 21 de outubro de 1967, terminou o 3º Festival de Música Popular Brasileira. Na mesma data, há 50 anos, nasceu uma nova MPB. Não foi miraculoso o que ocorreu no final daquela disputa, promovida pela TV Record e tema do documentário “Uma Noite em 67” (2010), de Ricardo Calil e Renato Terra. As transformações vinham sendo gestadas.

Enviaram sinais nos festivais de 65 (TV Excelsior) e 66 (Record). Mas, em 67, no palco do Teatro Paramount, em São Paulo, elas apareceram com força capaz de inaugurar um futuro. Os autores das quatro primeiras colocadas – Edu Lobo (em parceria com Capinam), Gilberto Gil, Chico Buarque e Caetano Veloso – se tornaram de imediato e permanecem até hoje protagonistas desse fluido rótulo MPB, terra vasta onde cabe da valsa ao blues. Com “Domingo no Parque” (2º lugar no festival), de Gil, e “Alegria, Alegria” (4º), de Caetano, as ideias tropicalistas foram lançadas. No ano seguinte, rachariam aquela geração e a inteligência brasileira (e a burrice também). Como não há ruptura sem violência, o tropicalismo elegeu Edu e Chico (e Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré e outros) ícones de um passado que precisava ser superado. O suposto nacionalismo dos autores de “Ponteio” (campeã) e “Roda Viva” (3º lugar) seria conservador, enquanto o mergulho na cultura pop, planetária, era moderno.

Em 67, essa cizânia ainda não estava estabelecida, mas a Record, que tinha sob contrato a maioria dos artistas, estimulava ou fabricava conflitos, em nome da audiência. Em 17 de julho daquele ano, ocorreu em São Paulo a estranha passeata contra a guitarra elétrica, tendo à frente Elis Regina e Jair Rodrigues (apresentadores do programa “O Fino da Bossa”) e como inimigos a Jovem Guarda e o rock.

Deslocado, Gil foi por causa de sua paixão por Elis. Falsas polêmicas geravam ibope. Em depoimento para “Uma Noite em 67”, Paulinho Machado de Carvalho, diretor da emissora, disse que via os festivais como os encenados torneios de luta livre que então faziam sucesso. Era preciso haver o mocinho (Chico), o vilão (Sérgio Ricardo deve ter ficado com essa ao quebrar seu violão e atirá-lo na plateia), a heroína (Nara Leão, da delicada “A Estrada e o Violeiro”, de Sidney Miller), os rebeldes (Gil e Caetano com grupos de rock). Vaias eram incentivadas e até ensaiadas nessa luta nem tão livre. O que restou de mais importante foi a alta qualidade de canções e compositores, além do significado histórico da noite. Ao menos dois aspectos podem ser destacados. É possível que Edu, Chico, Gil e Caetano nem tivessem assumido a música como profissão não fossem João Gilberto, Tom Jobim e “Chega de Saudade”.

A Bossa Nova é a mãe dessa geração, ainda frágil em 66, quando” A Banda” – amadora face ao que Chico fez depois- ganhou o festival da Record com “Disparada” (Theo de Barros e Geraldo Vandré). O que eles mostraram em 67 foram criações maduras e originais, ao mesmo tempo diferentes e à altura da Bossa Nova, pois também imbuídas do compromisso com um Brasil potente, não vira-latas.

Chico surgiu contundente e crítico, longe dos sambas leves; Caetano e Gil anunciaram um projeto estético unindo regional e universal, baixa e alta cultura. “Ponteio” não marcou virada para Edu, porque, dos quatro, já era o de perfil mais nítido. O segundo aspecto se refere ao momento do país. Em 67, o regime militar contava três anos de existência, mas ainda havia frestas de liberdade.

Os caminhos foram se fechando em 68, e, em dezembro, com o AI-5, a ditadura se instalou sem disfarces. Caetano e Gil foram presos e exilados. Chico se autoexilou. Edu foi estudar em Los Angeles. A partir de 68, as patrulhas passaram a agir com violência que deixou as vaias de 67 com ar de brincadeira de criança. A alegria que se vê nas imagens do festival acabou. A boa música e as transformações, porém, resistiram.


Tom confessional impressiona

Gilberto Gil se emociona ao confessar o medo da morte; Caetano Veloso se emociona ao confessar o protagonismo do amigo baiano sobre a inovação da Tropicália; Chico Buarque se emociona ao confessar que não se lembra das reuniões que formaram o movimento, pois estava bêbado. O clima emotivo e confessional dá o tom das entrevistas com os personagens do 3º Festival da MPB, e criá-lo foi uma das maiores dificuldades para fazer o documentário “Uma Noite em 67” (2010).

É o que lembra Ricardo Calil, que dirigiu o filme ao lado de Renato Terra. “O que a gente fez foi se preparar muito, ter uma pauta extensa sobre cada entrevistado, para depois poder abandonar essa pauta e ter uma conversa”. E qual foi o maior obstáculo? “Dois cineastas iniciantes desenvolverem a paciência e a sabedoria para entender que o cinema leva tempo”, diz Calil, também jornalista.

Tampouco foi fácil definir o recorte do trabalho, que começou como uma retrospectiva de 1965 a 1968, depois almejou retratar o ano de 1967, transmutou-se em um registro do festival, passou a focar apenas a final do evento e, por fim, virou o que é: um filme sobre seis músicas. Apesar da abundância de detalhes e depoimentos, ficaram de fora entrevistas com Elis Regina (1945-1982) e Johnny Alf (1929-2010), por exemplo – só com artistas, foram mais de 30 conversas. “Nenhum corte foi fácil”, diz Calil. A edição é um processo de sofrimento.

Viva vaia. Outro destaque de “Uma Noite em 67” é o retrospecto da vaia, uma das marcas daquela edição do evento dedicado a revelar talentos na música popular brasileira. Inflamado tal qual torcida organizada, o público recepcionou vários artistas de forma pouco amistosa.

Caetano Veloso dobrou-o com sorrisos e, ao final, verteu em aplausos os gritos coléricos. Sérgio Ricardo, não. Irritado com a reação do público antes de se apresentar, o músico destruiu seu violão e jogou os restos dele na plateia.

Embora o momento atual também seja de polarização, Calil não acha possível traçar paralelo entre aquele instante e atuais reações contra as artes, como em recentes campanhas contra exposições. Por outro lado, o cineasta se impressiona com o que vê como uma enorme demanda por um produto que retratasse aquele momento histórico. “A gente fez um filme motivado pela paixão pelo acontecimento e pelos artistas, mas não tinha noção do tamanho da recepção”, afirma. Ele completa: “Até hoje nos surpreende como o filme continua um assunto; existe um desejo de reencontrar aquele momento”.

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