“Relatos Selvagens”

Muitos dias de muita fúria 

Produzido por Almodóvar, “Pulp Fiction” argentino concorreu à Palma de Ouro

Qui, 23/10/14 - 03h00
Injustiça. Personagem de Ricardo Darín é o mais injustiçado das seis histórias do longa-metragem | Foto: Warner / Divulgação

Um dos melhores memes já criados na internet é a imagem de Julie Andrews de braços abertos no pôster de “A Noviça Rebelde”, com “Foda-se essa merda toda” escrito logo abaixo. Ele é perfeito porque, quando seu chefe arruína seu dia, alguém quase te mata no trânsito, ou é grosseiro sem nenhum motivo (ou seja, quase sempre), você pode chegar em casa, postar a imagem no seu Facebook, ninguém é pessoalmente ofendido, e Andrews descarrega sua raiva por você.

“Relatos Selvagens” é o retrato de um universo onde esse meme não existe. Ou melhor ainda: onde as pessoas resolveram colocar em prática seu maravilhoso conselho. O longa argentino, que estreia hoje, após concorrer à Palma de Ouro em Cannes e ser escolhido para concorrer a uma vaga (quase garantida) no Oscar de filme estrangeiro em 2015, é uma compilação de seis histórias de vingança que misturam “Pulp Fiction” com Ian McEwan e o lado mais sórdido do ser humano – resultando numa das produções mais divertidas do ano.

O mais tarantinesco (e o melhor) dos seis traz Leonardo Sbaraglia como Diego, um motorista arrogante em um carro importado, que insulta um pobre coitado em um calhambeque após ter dificuldade para ultrapassá-lo. Quilômetros depois, porém, o pneu do carro de Diego fura, e quando o outro motorista o alcança – bem, digamos que ele não gostou do que ouviu.

Antes, porém, o longa abre com Darío Grandinetti liderando um grupo de pessoas que descobre que não estão no mesmo voo por acaso. E segue com Rita Cortese como uma cozinheira que ajuda sua garçonete a se vingar de um mafioso do passado, no mais bobo e previsível dos seis contos. No episódio “classe média sofre versão UFC”, Ricardo Darín vive Simon, um engenheiro multado por estacionar em um local proibido não sinalizado. No único dos seis que não envolve vingança em si, Oscar Martínez é Mauricio, um pai tentando livrar da prisão o filho que atropelou uma grávida embriagado. E fechando com chave de ouro e sangue, está o maravilhoso casamento de Romina (Erica Rivas), que descobre durante a festa que o noivo Ariel (Diego Gentile) a traiu e precisa de poucos minutos para se transformar numa “Garota Exemplar”.

É importante ressaltar que o longa não trata de justiça, mas sim de vingança – quente, sacana e irracional. Lembra quando Saramago disse que “dentro de nós existe uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que nós somos”? “Relatos Selvagens” é sobre essa coisa. Mesmo o personagem de Darín, que é o mais injustiçado dos seis, é simplesmente alguém que não tem limites para provar que está certo. Ninguém aqui presta, e isso que é legal.

Esse é um dos segredos do roteiro do também diretor Damián Szifrón. Você pode não necessariamente se identificar com os personagens, mas conhece alguém assim. Como o recente “Locke” (disponível no Netflix), ele mostra que basta apenas um escorregão para a vida do ser mais comum se transformar num inferno – e o perigo de reagir a isso é que sempre existe alguém pior que você.

Szifrón brinca com essa indignação arrogante típica da classe média, que acha que “merda só acontece comigo”, e prova que o mundo é cruel com todos – só que algumas pessoas são piores que as outras. Mas a trilha sonora irônica e a linguagem classicamente cômica com que ele filma isso isentam o filme de qualquer tentativa de análise social ou lição de moral. É o exemplar perfeito do cinema argentino como aquele aluno que mata todas as aulas e, na hora da prova, ainda tira nota melhor que o cinema brasileiro caxias e certinho – porque não se esquece de que, acima de tudo, é preciso se divertir com o que se está fazendo.

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