Mostra SP

Mulheres que narram

“Entrelinhas”, dirigido pela belo-horizontina Emilia Ferreira, põe em voga a capacidade de reinvenção narrativa feminina

Dom, 23/10/16 - 02h00

São Paulo. Emilia Ferreira estava apenas no segundo período do curso de jornalismo da Newton Paiva, em 2003, quando decidiu fazer um intercâmbio em São Francisco, nos EUA. “Sempre quis viajar e encontrei ali um ensino bem diferente. Em BH, eu tinha muitas aulas teóricas. Em São Francisco, era uma carga mais prática, focada totalmente naquela teoria do ‘you can do it’” (“você pode fazer”, em português), conta a mineira.

Esse espírito fez o sonho de dirigir um filme, que sempre havia parecido algo inatingível para ela, tornar-se palpável. E isso foi o bastante para Emilia largar tudo na capital, transferir seus créditos para uma universidade em Miami e terminar seus estudos por lá. De aluna mediana aqui, ela se tornou “top of the class” (“melhor da turma”, em português) nos EUA e, aos 26 anos, era dona de uma agência em Nova York que representava nomes como Wes Anderson e Darren Aronofsky. Até que a intensa carga de trabalho levou a uma crise em que a mineira não conseguia enxergar nada e fosse diagnosticada com dislexia.

“E eu falei ‘that’s it’ (“é isso”), agora tudo faz sentido”, recorda, com seu forte sotaque norte-americano, incluindo várias expressões em inglês no meio da conversa. Capaz de entender melhor sua forma de lidar com o mundo, Emilia vendeu sua agência, foi estudar na School of Visual Arts e na New York Film Academy, e abraçou o sonho de ser diretora, que resultou no longa “Entrelinhas”, em competição na seção Novos Diretores da 40ª Mostra de São Paulo. E essa enorme capacidade de reinvenção essencialmente feminina é a própria matéria-prima do filme.

O roteiro de Gay Walley acompanha Jacqueline (Irina Bjorklund), escritora que conta com a ajuda do diretor Skene (Edoardo Ballerini) para transformar um texto seu sobre a relação entre o compositor Gustav Mahler e Freud em uma peça. O espectador conhece esse material à medida que ele é lido por Skene, que acredita que Jacqueline projeta nele sua vida pessoal, reescrevendo nas páginas seu complicado relacionamento com dois homens, David (Harry Hamlin) e Peter (Kevin Kilner). O que, eventualmente, pode ser verdade ou não.

“Escolhi esse roteiro porque ele é muito mais sobre um feeling que uma resposta. O homem ali é um processo de manipulação, e a mulher é um processo de vulnerabilidade, de escolher o próprio caminho, assumir a própria voz e lidar com as consequências”, explica Emilia. Segundo ela, o desejo de realizar o filme, feito em Nova York com orçamento de US$ 1 milhão, veio da constatação, como cinéfila, de que havia passado a vida toda vendo a complexidade e a sensualidade femininas sendo retratadas na tela pelo “male gaze” – o olhar masculino. E a mineira desejava ver uma mulher no controle da própria narrativa, com o poder de reescrever sua história.

Camaleoa. Se “Entrelinhas”, no entanto, tropeça na inexperiência de uma diretora abraçando temas que seu talento ainda não é capaz de dissecar, o poder e as singularidades da reinvenção feminina por meio da narrativa estão bastante presentes em outros títulos da Mostra. Um dos mais intrigantes deles é “Desconhecida”, do diretor Joshua Marston (“Maria Cheia de Graça”), sobre uma mulher, vivida por Rachel Weisz, que vive mundo afora, criando uma persona diferente – uma enfermeira, uma bióloga, uma ajudante de mágico – em cada lugar, até se cansar e partir para a próxima cidade.

O longa segue a personagem durante uma noite em que ela se depara com Tom (Michael Shannon), um homem que a conhecia antes dessa jornada de reinvenção. A partir daí, “Desconhecida” se torna um “pas de deux” interpretado por dois atores excepcionais e uma declaração de amor ao rosto e ao talento de Weisz, capaz de mudar todo o tom de uma cena ou o sentido de uma fala com um mínimo movimento no olhar ou uma mudança no penteado.

Por mais que seja inevitável a leitura da história como um estudo do ofício do ator, assumindo de corpo e alma uma vida inteira até que um projeto termine e o próximo comece, esse poder de Weisz faz dela quase coautora do filme. A atriz é uma espécie de diretora em cena, vivendo uma personagem que literalmente inventa a história enquanto ela acontece – com a reação e a entonação certas a cada curva da estrada. Há uma sequência em que ela e Tom cuidam de um casal, vivido por Kathy Bates e Danny Glover, que é quase uma cena mais norte-americana, mas não menos divertida, do ótimo “Cópia Fiel”, de Kiarostami.

A protagonista de Weisz, contudo, nunca deixa de ser uma pessoa real para se tornar uma idealização teórico-narrativa. Se o espectador sente a excitação da transformação camaleônica da personagem a cada nova persona, ele vê também no olhar da atriz a mesma solidão crônica presente em todas elas e que move todas as suas decisões desde o início de sua jornada davidbowieana. O mais interessante do filme, mesmo dirigido por um homem, é como ele dá esse poder e essa liberdade de ser imperfeito e múltiplo e complexo, associados quase sempre a personagens masculinos, a uma mulher. “Desconhecida” é, essencialmente, um longa sobre a liberdade e os riscos inerentes a não se conformar a nenhuma narrativa pré-estabelecida. Tudo tem dois lados.

“A vida é muito misteriosa. Hoje eu estou aqui falando isso, amanhã posso falar outra coisa completamente diferente, de acordo com as circunstâncias. Para mim, o importante é ser autêntica”, reflete Emilia. E ela acredita que, para uma mulher, isso significa lutar contra um sistema que quer colocá-la num lugar mais fácil de se ler. “Quando a mulher sai um pouco desse espaço, fica mais difícil entender quem ela é”, acrescenta. Para ela, o motivo disso é bem claro. “Eu nunca conheci uma mulher do ponto de vista do woman gaze e acho que é por isso que a gente ainda está tentando compreender essa multiplicidade de sentimentos. Não que não seja certo se definir pelo olhar de um homem, mas tem um outro lado da moeda que a gente não conhece ainda”, convoca.

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