Cinema

Mulheres que rompem

Depois de passar por mais de 40 festivais e dez prêmios no mundo todo, ‘Baronesa’ estreia no Brasil

Qui, 14/06/18 - 03h00

Inicialmente, Juliana Antunes queria que “Baronesa” fosse um filme sobre “mulheres lésbicas jovens na periferia”. Mas depois de cerca de quatro anos imersa nesse universo – seis meses deles vivendo na Vila Mariquinha, favela do bairro Juliana, em BH – ela conta que teve que aprender a deixar seu ego de lado. “A guerra mudava tudo ali. Da minha janela, eu via barracões sendo construídos e caindo no mesmo dia, como tudo mais na minha frente. E eu tive que deixar que essa realidade invadisse meu filme também”, confessa. 

Foi assim que a jovem diretora, hoje com 29 anos, permitiu que “Baronesa” – que estreia nesta quinta-feira (14) – se tornasse aquela alquimia única de quando o real encontra o cinema, por meio da história de duas mulheres procurando uma forma de existir, de resistir, em meio ao universo masculino e violento que as circunda. “Se encontro alguém na favela hoje, daqui a duas semanas essa pessoa pode não estar mais lá porque morreu, casou. Demorei muito para conhecer o mar, pisar na praia. Mas descobri que a favela é o mar aberto. As coisas parecem tranquilas e, do nada, vem um caldo. Tudo muda com o vento, com a toada”, descreve. 

O curioso é que – guardadas as devidas proporções – essa luta das protagonistas Andreia e Leid pelo direito a existir ou, em alguma medida, sonhar, reflete a batalha da própria Juliana em seu meio. A cineasta, que já trabalhava em sets há quase dez anos antes de dirigir o longa, conta que “Baronesa” é o resultado de “um monte de mulheres que não aguentava mais coar café e servir lanche” para equipes de filmagem, aguardando humildemente sua chance de chegar na direção. “A maioria dos caras começa como diretor porque homem aposta em si. Uma menina tem que se desdobrar em 20, 30 trabalhos para fazer um filme. Uma vez num set, eu pedi a um chefe para ver uma cena, e ele me disse que eu não estava ali para pensar”, desabafa. 

Foi por isso que ela decidiu fazer seu longa com metade do orçamento de um curta, com a ajuda das amigas Marcela Santos e Giselle Ferreira, que “acreditaram no projeto quando ninguém da faculdade me apoiou”. “Eu sabia, e sei, que é muito difícil acessar um edital público. Apenas 10% de mulheres ganham esses editais. Quantas delas são gays? Querendo filmar o feminino?”, questiona. O resultado de sete anos “trabalhando loucamente”, porém, do lanche à câmera, valeu a pena. “Baronesa” rodou mais de 40 festivais ao redor do mundo, acumulando elogios rasgados e mais de dez prêmios. 

“É incrível porque três pessoas respondem por quase tudo do filme. Temos dívidas até hoje. E eu sei que dificilmente outro longa na minha carreira vai ter essa repercussão”, reconhece Juliana. E “Baronesa” funciona exatamente porque a cineasta encontrou como protagonistas para sua história pessoas com essa mesma ousadia, esse inconformismo diante das adversidades. “Na favela, você passa direto da infância para a vida adulta. Mas isso gera alguns adultos meio adolescentes. E eu acho incrível a pessoa que não concorda em acordar de madrugada para pegar três ônibus e chegar num emprego de telemarketing de merda. Procurei essa espécie de transgressão”, explica. 

Essa transgressão vai muito além das conversas de Andreia e Leid sobre sexo, masturbação, drogas ou os parceiros presos. Assim como o recente “Arábia”, o maior mérito de “Baronesa” é como ele permite a suas protagonistas uma consciência sobre a própria vida e um desejo de romper com o ciclo de violência e miséria em que estão presas – mesmo que não possuam as ferramentas e os meios para isso. 

E o que mais chama atenção é a naturalidade com que elas discutem e encenam isso. Completamente indiferentes à presença da câmera, o elenco não-profissional empresta ao filme uma veracidade tamanha que torna quase impossível acreditar quando Juliana afirma que “Baronesa” é muito mais ficcional que documental. “A Andreia e a Leid são excelentes atrizes. Em outro contexto, elas estariam trabalhando num filme atrás do outro”, argumenta a diretora. 

O outro elemento fundamental a essa carga visceral e autêntica do longa é o excelente trabalho de som que, das músicas aos barulhos que circundam os diálogos, mergulha o espectador na experiência da cineasta de ter morado ali. O mérito é do editor de som Pedro Durães e da técnica de som Marcela Santos. “Ela aprendeu a fazer som para o ‘Baronesa’. Nunca tinha feito antes e criou um sistema de captação para o filme, sem lapela, apenas um microfone e um amplificador”, conta o diretor. 

Para ela, essa “paixão da primeira vez” de todos os envolvidos – à frente e atrás das câmeras – fez do filme o que ele é hoje. “É o desejo louco, maluco, de uma equipe pequena e guerreira, que deu no que deu”, sintetiza.

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