ENTREVISTA

'O Iphan devia ser tombado'

Kátia Bogéa, presidente do Iphan

Dom, 04/12/16 - 02h00

Historiadora especializada em arte sacra, a nova presidente do Iphan falou sobre os 80 anos da
instituição celebrados no ano que vem, o desmonte técnico que o órgão enfrenta hoje, a luta contra a flexibilização dos licenciamentos ambientais, o anúncio do PAC Cidades Históricas para 2017, além de ressaltar o veto do Iphan ao polêmico empreendimento La Vue, em Salvador

Você está desde a década de 1980 no Iphan. Como foi sua trajetória no órgão?

Eu sou historiadora de formação, com especialização na área de arte sacra. Nos últimos 13 anos, atuei como superintendente do Iphan no Maranhão e participei de vários trabalhos, como o Terreiro da Casa das Minas (templo de candomblé em São Luís), mais importante terreiro de raiz do Brasil. Na época, estávamos começando o PAC das Cidades Históricas, o que foi importante para São Luís conseguir aprovar 44 ações no programa.

Você assumiu o Iphan há cinco meses. Qual a situação técnica e de trabalho da instituição hoje?

Eu assumi o Iphan num momento de grande fragilidade. São 27 superintendências no Brasil para um órgão que tem o maior acervo botânico da América Latina, são 12 mil sítios arqueológicos cadastrados, mais de um milhão de objetos históricos arrolados, mais de meio milhão de imóveis tombados. E temos apenas 693 servidores – 693, não tem condição. Em 30 anos, foram apenas dois concursos. Fora todos os problemas burocráticos e de recursos, a situação dos servidores é a mais grave. E não há plano de carreira. Um técnico, que ganha pouco mais de R$ 2.000, é responsável por cuidar de um parecer que vale bilhões. A história do Iphan tem servidores como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira. Estou dizendo que, em dois anos, se não houver concurso no Iphan, vamos ter mais de 300 vagas desocupadas de servidores que estão se aposentando. Isso vai interferir diretamente no trabalho do órgão, porque serão postos de trabalho ociosos e fundamentais. Olhando toda a história e importância do órgão, posso afirmar, com certeza, que o Iphan merecia ser tombado também.

Quais são os maiores desafios no tombamento de conjuntos históricos no Brasil e qual será sua posição como presidente do Iphan daqui para frente?

Nós temos um gravíssimo problema nos centros históricos. Como meio comparativo, na Europa, que não há mais espaço para expansão de construções, existe um patrimônio valorizado e ligado à sociedade. No Brasil, um país com dimensão continental, não. Em todas as cidades brasileiras, temos um retrato de centros abandonados. E o contraste social é um dos maiores responsáveis. No país, Ouro Preto e Alcântara são as únicas cidades tombadas como Patrimônio Nacional. E Alcântara tem um dos menores IDHs do Brasil inteiro. Isso é surreal.

A especulação imobiliária é um dos principais problemas do Iphan?

É um imbróglio, certamente. Desde 1970, o Iphan luta por um programa que consiga imprimir resultados efetivos em imóveis privados tombados. Isso porque existem 600 mil imóveis privados tombados no país – eles são a maioria, comparados aos públicos, são casas de pessoas comuns, que às vezes querem fazer obras, solicitam análise do Iphan etc. Ao mesmo tempo, cenários como a Baía de Todos-os-Santos, na Bahia, e a orla de Recife atraem muito a especulação imobiliária, mas deixam de lado o patrimônio. O que quero dizer é que há um grande interesse em ter uma vista para praia, mas não há interesse em reabilitar e conservar imóveis e memórias históricas dessas regiões. Eu fiquei 13 anos no Maranhão e o maior problema lá era isso: o que fazer para tornar áreas históricas atraentes, cultivar investimentos, manter suas características. Porque normalmente os centros são destruídos ou abandonados.

Hoje, o país também vive um debate sobre flexibilização das leis ambientais, como preveem algumas medidas da Agenda Brasil, capitaneada pelo senador Renan Calheiros. Qual a posição da sua gestão no Iphan sobre o tema?

Eu acompanho as discussões sobre flexibilização do licenciamento ambiental há pelo menos seis anos, em diálogos com a Casa Civil. Minha luta sempre foi para organizar a participação do Iphan nesse processo, mas sempre encontrei muitos entraves e, agora, não será diferente. Depois de mais de 40 audiências públicas com participação do Ministério Público Federal (MPF) e vários órgãos, depois de exaustivas discussões com a sociedade civil, chegamos a uma questão: manter a instrução normativa 001. É essa instrução que regulamenta o prazo que o Iphan tem para entregar uma análise, as categorias dos empreendimentos, seus detalhes técnicos e restrições, orientações para classificações de imóveis tombados, tudo passa por essa normativa. Agora, o deputado Nilson Leitão (PSDB-MS) tem um projeto de lei para acabar com a instrução normativa 001, segundo ele, para agilizar os licenciamentos. Isso é passar por cima da Constituição e tirar do Iphan a competência de resguardar o patrimônio. Por que o trabalho do Iphan não é apenas dar parecer, autorizar, tombar. No caso de bens imateriais, somos responsáveis por desenvolver atividades de salvaguarda, garantindo que a forma de produzir o queijo mineiro, por exemplo, seja mantida e preservada – e não apenas amplamente reconhecida.

Como principal política de incentivo do patrimônio material, o PAC das Cidades Históricas terá investimento mantido para 2017?

O PAC tem um recurso à parte, enquanto o orçamento do Iphan para atender o Brasil inteiro é de R$ 18 milhões. Para 2017, o Governo Federal colocou à disposição R$ 200 milhões, mas é um valor que precisa ser votado pelo Congresso – provavelmente só no ano que vem. Depois, a gente ainda pode sofrer cortes, tudo vai depender da situação econômica do país. Minas Gerais aprovou 93 ações dentro do PAC. Vão ser cinco em Belo Horizonte, dez em Congonhas, 13 em Diamantina, 15 em Mariana e outras 15 em Ouro Preto, nove em Sabará, 15 em São João del Rei e outras 11 ações em Serro. Esse é o plano teórico.

Em nota pública, você defendeu a decisão do órgão de barrar a construção do empreendimento La Vue, em Salvador, que pretendia erguer um prédio de 30 andares na cidade. Porém, o Iphan da Bahia havia autorizado a obra anteriormente. Como funcionam os pareceres regionais do órgão? Você já sofreu pressão política para liberar empreendimentos?

Isso não aconteceu comigo. É normal haver análises divergentes dentro do Iphan. É por isso que temos a portaria 420 de análise de projetos. Você pode solicitar uma obra para sua casa, que é tombada, e o Iphan regional não autorizar. Uma alternativa é levar o pedido ao Iphan em Brasília, pedindo uma revisão. No caso de Salvador, aconteceu uma divergência, sim, porque as pessoas podem errar. É algo normal até, acontece. Mas como a palavra final é do Iphan nacional, nós revimos a decisão regional. E vamos manter o parecer.

Quais são os planos para o aniversário de 80 anos do Iphan, em janeiro do ano que vem?

Vamos fazer uma celebração o ano inteiro. Vamos publicar a “Revista do Iphan” em edição especial de dois volumes. Na primeira parte, traremos artigos e análises de historiadores, arquitetos, antropólogos, profissionais de diversas áreas. E, na segunda parte da publicação, nós propomos olhar para o futuro, imaginando os próximos 80 anos do Iphan. Em outubro de 2017, vamos promover uma grande discussão sobre o patrimônio histórico no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. A ideia é atrair o público e instituições parceiras para nos ajudar a preservar a história do Brasil – tanto material quanto imaterial.

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