Entrevista

O som da palavra feminina

“Quando comecei, com 19 anos, no final dos anos 60, quase não havia compositoras na cena da música”

Dom, 28/05/17 - 03h00

Joyce Moreno
Cantora, compositora e instrumentista

Sucesso de público e crítica no Japão, Joyce, 69, produziu seu mais recente disco para o país oriental. Agora, neste mês de maio, ela lança “Palavra e Som” no Brasil. Com quase 50 anos de carreira, ela apresenta em seu novo trabalho apenas autorais. Ao Magazine, a autora de “Feminina” e “Clareana” falou sobre novas parcerias, o momento da música brasileira e a presença da mulher.

O que te impulsionou a gravar “Palavra e Som”, seu novo CD?

Normalmente gravo um CD novo a cada ano, pois existe muita demanda para meu trabalho no exterior. Costumo alternar discos autorais com discos como intérprete e arranjadora, visando sempre ter um repertório variado. Um autoral geralmente sai a cada três ou quatro anos. Isso acontece quando o buquê de canções se completa. Foi esse o caso agora. Compor música, escutar música, estar em contato com música, para mim, é uma atividade diária, que passa por várias etapas, a gravação de um álbum é uma delas e que dá certa amarrada nesse processo todo.

Como você estabeleceu as parcerias que aparecem nesse CD, com Paulo César Pinheiro, João Cavalcanti e a póstuma com o poeta Torquato Neto (1944-1972)?

Neste CD, são 13 músicas, dez com letra e música apenas minhas, e três com parceiros. São relações diferentes. O Paulo César é um parceiro constante e muito querido, faz parte de minha trajetória pessoal e artística. João é um parceiro novo, somos de gerações diferentes, mas nos entendemos muito bem. Gosto dessa interação com épocas e pessoas diferentes e de levar isso para meus trabalhos. Acredito que a diversidade nos ajuda a crescer, não se trata apenas de arte. Já com o Torquato foi uma história bastante interessante. O pessoal que foi fazer a pesquisa para um documentário sobre ele encontrou em suas anotações, lá em Teresina (PI), sua cidade natal, uma lista de projetos que ele gostaria de fazer e que incluía uma parceria comigo. Fiquei, ao mesmo tempo, emocionada e surpresa. Fomos amigos, mas eu não tinha a menor ideia de que essa parceria estava nos planos dele. Depois nosso amigo em comum, também poeta e letrista, Ronaldo Bastos, me entregou uma carta-poema que Torquato escreveu para ele em 1969. É a faixa 9 do disco, “O Poeta Nasce Feito”, que eu musiquei de cara. Tem uma letra muito sensível, e ao mesmo tempo ácida, aquela inquietação que ele tinha. É a cara dele. Fiquei muito feliz com esse presente que recebi.

O álbum traz uma participação especial, que é a do Dori Caymmi. Ele canta a faixa 5, “Dia Lindo”, parceria sua com o João Cavalcanti. Como foi esse convite?

Dori Caymmi é outro amigo e parceiro de longa data, temos feito muitos shows juntos no Brasil e no exterior. Nossa sintonia musical é imensa. Eu tinha acabado de participar de um projeto dele com letras do Mário Lago e achei que a voz do Dori cairia lindamente nessa minha parceria com o João, que apesar de bastante jovem, escreveu uma linda letra sobre a velhice e a finitude da vida.

Falando em projetos especiais, você recentemente participou com Toquinho e João Bosco de uma homenagem aos 90 anos do Tom Jobim, e você cita o Tom na quarta faixa do disco, “Mingus, Miles & Coltrane”, junto a outros artistas. Como surgiu a ideia dessa música?

Nessa música eu misturo as influências do jazz com o samba e a bossa nova, que estão muito presentes na geração da música que faço. O samba e a bossa nova, assim como o choro, são músicas nascidas no Rio de Janeiro, que é também minha cidade. Além dos que você mencionou, e que estão no título, cito também o Noel Rosa, personagem fundamental na história do samba e da música brasileira. O que há em comum entre eles é o fato de a música de todos ser, essencialmente, criativa. A obra do Tom, em termos de música brasileira, é a mais valorizada do mundo. Ele é um clássico moderno. Em qualquer país do mundo em que você chegue, vai ouvir uma música dele, em teatros, boates, em lojas, na rua. Isso vale para Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Japão, e para toda a Ásia. É um fenômeno realmente mundial. O Brasil o conhece menos do que deveria. Posso dizer, inclusive, que ouvir a música “A Felicidade” (de Tom e Vinicius de Moraes) durante a infância, com a interpretação do João Gilberto, foi determinante na minha decisão de fazer música quando crescesse.

O que representa para você a aclamação que seu trabalho recebe no Japão? E como foi a recepção deste disco no mercado daquele país?

É o resultado de uma construção de mais de 30 anos trabalhando no Japão anualmente e conquistando uma base muito sólida em termos de público. Esse disco foi muito bem recebido, embora as letras sejam todas em português, mas o público japonês é tão apaixonado pela música brasileira que muita gente acaba estudando o português só por causa do amor à música. É uma experiência incrível, sem precedentes.

A capa do disco, aliás, traz a pintura de um retrato seu feito pelo artista plástico japonês Shinichi Sugaya. Foi uma ideia sua?

Na verdade, não. Essa foi uma iniciativa da gravadora japonesa que encomendou o disco. Mas posso dizer, sem sombra de dúvida, que eu aprovei e gostei muito, achei que ele captou exatamente a mim mesma e à música que faço. É uma pintura delicada, concisa. Sou muito grata ao povo japonês e à sensibilidade com que eles recebem toda a minha arte.

Como você avalia a presença da mulher autora dentro da música popular brasileira e quais as principais diferenças em relação à época que você surgiu e agora?

Quando comecei, com 19 anos, no final dos anos 60, quase não havia mulheres compositoras na cena da música brasileira. Principalmente compondo na primeira pessoa do singular. Ao longo desses anos todos, principalmente a partir dos anos 80, isso mudou bastante, e hoje em dia temos muitas compositoras e também muitas instrumentistas, o que muito me alegra, acho ótimo e fundamental. Espero que haja cada vez mais mulheres autoras no país.

Quem foram suas principais referências e quando você teve certeza que esse era o caminho a trilhar?

Minhas influências são justamente o samba, a bossa nova, o jazz, a música clássica, principalmente dos impressionistas franceses. Tudo isso misturado. Minhas primeiras lembranças musicais remetem aos Carnavais cariocas da minha infância. Sou graduada em jornalismo pela PUC do Rio de Janeiro, esse era uma espécie de ‘plano B’, caso a música não desse certo e me rendesse frutos. Mas, desde sempre, soube que era esse meu caminho e meu dom.

Qual sua avaliação sobre o atual momento da música brasileira?

É muito complicado. E não sei se tem a ver exatamente com as plataformas digitais, isso é uma mudança que estamos atravessando em todos os níveis, não só na música, mas na literatura, na imprensa escrita, nas televisões, no cinema, em todas as mídias. E também nas relações interpessoais. O empobrecimento da música brasileira que hoje em dia é exposta nas TVs e nas rádios tem muito mais a ver com uma questão da qual estamos apenas levantando a primeira ponta do iceberg agora: corrupção.

Quais são seus planos?

Projetos para o futuro próximo incluem meus 50 anos de carreira, que se completarão em 2018. E uma ida a Belo Horizonte em breve, com a turnê desse disco novo, mas ainda não tenho a data acertada.

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