Memória

Poeta do diálogo e da constante constante construção

Trinta anos após sua morte, Carlos Drummond de Andrade ganha homenagens e tem livro de cartas trocadas com Pedro Nava

Dom, 30/07/17 - 03h00
Cartas foram escritas entre 1926 e 1983 | Foto: Fernando Bueno

Em 1984, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) despediu-se de sua coluna no “Jornal do Brasil”, em que colaborou por mais de uma década, tendo começado em 1969. No texto derradeiro, ele agradeceu aos leitores e garantiu que, apesar de deixar a crônica, continuaria a se dedicar a outras formas de escrita, afinal, escrever era “sua doença vital”. Sem dúvida, o gênero que mais permeou a trajetória de Drummond, até seus últimos dias de vida, foi a poesia. É de 1987, ano de sua morte, por exemplo, o poema “Elegia a um Tucano Morto”, que o itabirano destinou ao neto Pedro Drummond.

A entrega a esse ofício consagrou-o como um dos principais autores do país e, de acordo com especialistas, ele figura como o mais importante poeta brasileiro do século XX. Drummond deixou 25 livros de poemas, além de títulos de contos, crônicas e um vasto acervo de correspondências.

Estas, inclusive, têm sido constantemente revisitadas, o que tem gerado novas edições centradas nos escritos do autor, a exemplo de “Descendo a Rua da Bahia”, prevista para ser lançada em Belo Horizonte no dia 17 de agosto (data exata do falecimento de Drummond), no Museu Inimá de Paula. O volume, organizado por Eliane Vasconcellos e Matildes Demétrio, reúne as cartas trocadas entre Drummond e Pedro Nava (1903-1984).

Na ocasião, será realizada uma homenagem a Drummond pelos 30 anos de sua morte com um sarau e um bate-papo com as organizadoras. O escritor e jornalista Humberto Werneck, que elaborou o prefácio do livro e prepara uma biografia de Drummond, também participará da roda de conversa ao lado do secretário de Estado de Cultura, Angelo Oswaldo, e de Maria de Andrade, editora da Bazar do Tempo, responsável pela publicação.

“O livro é uma forma de mostrarmos nosso carinho e admiração por Drummond, Nava e também Pedro Doyle”, afirma Eliane, que conheceu os autores mineiros pessoalmente, e é pesquisadora e museóloga da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde estão guardados os documentos consultados para produzir o tomo. De acordo com Eliane, “Descendo a Rua da Bahia” é uma iniciativa autônoma que vem sendo desenvolvida há muito tempo.

“Esse livro não é ligado a algum projeto de pesquisa da Casa de Rui Barbosa. Eu e Matilde nos dedicamos a ele no nosso tempo livre, por isso demorou para ficar pronto”, completa ela. O conjunto abrange as correspondências emitidas entre 1926 e 1983, com alguns lapsos temporais nesse intervalo. “No total, são 63 documentos, entre cartões, cartas, telegramas e postais. Então, além das correspondências, há uma variedade de mensagens e um rico material iconográfico que é também inédito”, pontua a pesquisadora.

Ela ressalta que o conteúdo é acompanhado de notas explicativas criadas a partir do cruzamento de informações dos acervos de Drummond, Nava e Plínio Doyle. O último era próximo dos dois e promovia reuniões aos sábados em seu apartamento, no Rio, onde os escritores se encontravam para discutir literatura. “A gente encontrou nas mensagens trocadas entre Drummond e Nava referências aos ‘sabadoyles’, que era como eles chamavam as reuniões no apartamento do Plínio. Mas, nas cartas dos anos 20, eles falam dos amigos que encontravam no Bar do Ponto, em Belo Horizonte, como Afonso Arinos, Emílio Moura e Abgar Renault”, diz Eliane.

Amizade. Nas cartas a Nava, Eliane destaca que prevalece o tom de amizade. “Eles também conversam sobre poesia, mas de uma maneira diferente de como Drummond se dirigia a Mário de Andrade em outras cartas. Com Nava, ele está diante de um amigo. Nava pede a opinião de Drummond sobre alguns poemas, e Drummond, inclusive, ressalta numa mensagem que nunca se conformou com o fato de Nava ainda não ter um nome na capa de algum livro em 1947”, relata ela.

Outro aspecto que Eliane destaca é a constatação da generosidade de Drummond. “Ele tinha uma solidariedade muito grande com todo mundo que estava pesquisando algum objeto. Eu já tinha ouvido falar da generosidade dele pelos relatos de escritores que eu conheci e que frequentavam o ‘sabadoyle’. Numa carta que ele envia a Pedro Nava, por exemplo, ele transmite uma informação a ser repassada a Fernando da Rocha Peres. Nava, quando pede informações sobre o modernismo, a fim de escrever um artigo, recebe recortes de jornais que Drummond retira do seu acervo pessoal”, relata Eliane.

Trocas. O escritor, crítico e pesquisador Silviano Santiago, um dos organizadores do título “Carlos e Mário”, observa que o poeta mineiro também soube absorver várias contribuições. “Ele recebe muito bem as críticas de Mário de Andrade, que sugere algumas mudanças. Então, Drummond aproveita um pouco das experiências dos outros, o que acho fantástico. Por exemplo, ele manda para Mário de Andrade, em 1926, uma primeira coleção de poemas dele, com o título ‘Minha Terra Tem Palmeiras’, mas acaba não publicando. O interessante é perceber que este é um título mais próximo da poesia de Oswald de Andrade do que da de Mário”, pontua ele.

Santiago frisa que Drummond é um poeta que foi construindo-se aos poucos. “O que é algo extraordinário, porque ele possuía uma capacidade de autocrítica muito grande, e foi isso o que o tornou o maior poeta modernista brasileiro a partir dos anos 30. Enquanto os outros já estavam publicando, ele espera um pouco até trazer seus poemas num livro que reúne o que ele fez desde a década de 20”, afirma o escritor.

Roberto Said, professor da faculdade de letras da UFMG e pesquisador, acrescenta que Drummond, embora se colocasse como aluno no diálogo com Mário de Andrade, não se manteve completamente obediente. “Ele foi um aluno rebelde. Ao mesmo tempo em que incorporou soluções indicadas por Mário, ele criou uma dicção singular e própria. Numa das cartas escritas por Mário, já no fim de sua vida, ele descreve que Drummond era semelhante a uma folha lançada ao vento. Acho que por meio dessa metáfora ele consegue explicar essa relação de proximidade e afastamento do modernismo que Drummond estabelece. De alguma forma, Mário não conseguiu ter o controle total sobre Drummond”, reflete Said.

Ele recorda que, enquanto dialogava com o modernismo paulista, Drummond também estava atento a outros movimentos do mundo. “Ele lia furiosamente tudo que havia de literatura europeia naquele momento. Nas resenhas que ele publicava nos anos 20 em Belo Horizonte, por exemplo, ele trazia textos sobre nomes da literatura francesa, alemã, espanhola. A década de 20 foi sobretudo um período de formação e experimentação para ele”, diz.

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