Cidadania

Potencial cultural

Ocupações da RMBH demonstram fôlego e vigor artístico

Por Gustavo Rocha
Publicado em 25 de novembro de 2018 | 03:00
 
 
Teatro. “Assembleia Comum” se apresenta na Ocupação Dandara Guto Muniz/Divulgação

Em um país historicamente desigual, a questão da moradia garantida e universal para todos nunca foi real. Lutar por um teto, portanto, sempre foi uma bandeira (e, principalmente, uma prática) para uma parcela da população a quem foi negado esse direito. De tal forma, a região metropolitana de Belo Horizonte – bem como outras partes do Brasil – convive com diversas ocupações, em áreas mais afastadas, mas também em prédios ociosos na região central da capital. Além de buscar as condições básicas de moradia nesses espaços, seus habitantes começam a vislumbrar iniciativas culturais para promover uma ocupação também simbólica e subjetiva. Assim, grupos de teatro e de costureiras, cineclubes, blocos de Carnaval e até o projeto de um centro de cultura popular surgem na paisagem das ocupações.

Na ocupação Rosa Leão, como apoio de estudantes de arquitetura da UFMG e da Faculdade Isabela Hendrix, existe o projeto do Centro de Poder Popular, que já está em processo de construção. “Queremos um espaço para lazer e uma rádio comunitária, para introduzir a cooperativa de costureiras. Além de atividades culturais que já acontecem aqui: capoeira, duelo de passinho e hip-hop. Queremos formar turmas de teatro no futuro. É um projeto para garantia de direitos”, destaca Charlene Egídio, uma das líderes comunitárias da ocupação. A obra, feita por voluntários, já começou, mas está parada por falta de materiais. “Sabemos que o que muda a vida é só a luta e nossa organização. Por isso, vamos seguir firmes, fortalecer nossa comunidade, através do Centro de Poder Popular”, garante ela.

Na ocupação urbana Carolina Maria de Jesus, formou-se o grupo de teatro Mulheres de Luta, que tem trabalhado constantemente com a diretora e atriz Cristina Tolentino. Da experiência nasceu “Todas Elas, Todas Vozes”, que ecoa a experiência feminina nas ocupações. “Falamos sobre questões feministas, com o foco na trajetória de mulheres que, na luta por moradia, passam de uma limitada vida doméstica à luta revolucionária pela dignidade humana. Isso confere um sentido libertário para suas vidas e para a comunidade a que elas pertencem”, pontua Cristina.

A experiência com as mulheres tem se frutificado em diversas frentes. As mais interessantes delas, talvez, sejam a circulação do trabalho – tendo passado pelo festival de cenas curtas do Galpão Cine Horto e também por outras ocupações – e o desejo de continuar fazendo teatro para trazer à tona as questões dessas vozes. “O teatro trouxe vida para elas. Nenhuma delas jamais tinha ido a um show, ao teatro. É o poder da voz que elas têm e não conheciam”, destaca Cristina.

“Antes de morar em uma ocupação, eu não sabia dos meus direitos, os direitos das mulheres. Via muitas injustiças e não sabia como lidar. Agora eu sei que sou forte e que nós, mulheres, juntas, podemos muito. Estou na luta, sou mulher. Posso ser o que eu quiser”, destaca Emanuelle de Oliveira, uma das atrizes do grupo.

Após nove meses no prédio do Sistel (na esquina de avenida Afonso Pena com rua Rio Grande do Norte), a ocupação foi remanejada pacificamente para um hotel abandonado, também no centro. Por lá, as famílias devem ficar por até três anos, prazo para a construção de casas populares, em dois terrenos do Estado, no Barreiro.

 

Intercâmbio entre as ocupações

Com cinco anos de vida, o Espaço Comum Luiz Estrela – ocupação que fica na rua Manaus, no bairro Santa Efigênia – vai desdobrando suas atividades. Atualmente, além do grupo de teatro, o espaço abriga a Feirinha Estelar, o bloco de Carnaval Blocomum e um núcleo de restauro e memória que tem aulas abertas a quem se interessar. Para Joviano Mayer, um dos integrantes do grupo de teatro, o fato de o Espaço Comum ser uma ocupação influencia diretamente as escolhas estéticas da trupe. “Implica uma postura política ante a realidade, um discurso crítico e uma prática alinhada com a perspectiva dos movimentos sociais. A Trupe Estrela, por exemplo, desde o princípio se firmou como um grupo de teatro político de rua, cujas dramaturgias são atravessadas pelo tema antimanicomial, feminismo, questão racial, pauta LGBTI, artivismo, resistência contra os retrocessos sociais”, relata Mayer.

Um dos trabalhos da Trupe Estrela, “Assembleia Comum”, esteve presente na programação do Festival Internacional de Teatro (FIT), em 2018. A experiência do FIT foi ainda mais potente porque a trupe se apresentou em duas ocupações: Dandara e Vitória. Apresentar essa obra nesses espaços urbanos periféricos significa ampliar o debate político para os territórios insurgentes sob outras formas e estéticas, furar a bolha para dialogar com o povo, de modo horizontal, dentro de uma perspectiva problematizadora e não doutrinadora como ainda é frequente na esquerda tradicional”, pondera o ator.