“A Chegada”

Precisamos falar, apenas falar 

Ficção científica é um dos filmes hollywoodianos mais inteligentes do ano

Qui, 24/11/16 - 02h00
Expressiva. Amy Adams carrega todo o processo intelectual e emotivo do filme em seu rosto | Foto: Sony / Divulgação

Os caracteres C-A-S-A por si só não são nada. Não há nada inerente a eles que indique o que é uma casa, a não ser o sentido que projetamos ao vê-los. A ideia de um lugar seguro, ou não, de boas memórias, ou más, grande, pequeno. Os símbolos são convencionados, mas o significado está em nós, e não neles.

Por isso, não é por acaso que os caracteres da linguagem dos aliens de “A Chegada”, que estreia nesta quinta-feira (24), lembrem o famoso teste de Roschach. Porque pela maior parte do filme, em que os humanos não a entendem, nem o que os visitantes querem aqui, todas as interpretações feitas pelos personagens dizem mais de nós do que dos seres extraterrestres. E é isso que faz do longa do diretor Denis Villeneuve (“Sicario”), como toda boa ficção científica, uma grande reflexão alegórica sobre sua sociedade.

O filme acompanha a linguista Louise (Amy Adams), convocada pelo governo quando 12 naves alienígenas aterrissam em diversos pontos do globo. Ao lado do físico Ian (Jeremy Renner), ela deve encontrar uma forma de se comunicar com os visitantes e entender seu propósito aqui, antes que chineses ou russos abram fogo contra eles.

Isso mesmo: “A Chegada” é um filme sobre uma protagonista tentando evitar uma guerra. Porque o contrário disso você já vê em todos os outros filmes em cartaz, e a obsessão em encenar a violência diz muito do mundo hoje.

O resultado é uma corrida contra o tempo tensa e exasperante sobre um grupo de pessoas tentando dizer “oi, tudo bem? Quem são vocês e o que querem?”. E a dramaturgia contida nisso é tão mínima que só um rosto expressivo como o da talentosa Amy Adams é capaz de imprimir na tela o desafio e a emoção de um processo tão intangível e intelectual.

Não que ela não seja ajudada pela ótima direção de Villeneuve. O diretor começa o filme com uma fotografia opressivamente escura e sem cor, em que a única coisa que se destaca são os enormes olhos azuis da atriz, e com a trilha caótica e experimental de Jóhann Jóhannsson (“A Teoria de Tudo”) se misturando à ruidosa edição de som para expressar o estado de confusão e incompreensão dos personagens.

À medida que ele vai diminuindo e o diálogo se estabelece, a música vai ficando mais distinta, e a fotografia vai se iluminando até o rosto de Louise ser inundado por um grande banho de luz branca no final.

Mas “A Chegada” é um filme sobre linguagem – e como ela é o que usamos para dar sentido ao mundo. E a linguagem do cinema, sua exclusividade, é a montagem. E é ela que Villeneuve e seu editor Joe Walker (“12 Anos de Escravidão”) usam para ilustrar como o sentido pode ser construído e desconstruído por meio da manipulação de suas convenções e das expectativas e das projeções do público.

É isso que faz de “A Chegada” um longa com um começo intrigantemente denso e intelectual, de diálogos sobre ciência e linguagem, que serve de base para um final fortemente humano e emocional – receita de sucesso de todo bom sci-fi. O filme acaba se revelando uma parábola, muito pertinente para 2016, sobre a coragem de viver e amar diante das piores perspectivas.

Mesmo frente ao cenário mais desolador, o conhecimento e a intelectualidade não devem ser motivo de descrença ou desânimo, mas, sim, um estímulo ao diálogo e à fé na razão. Porque o que importa não é o resultado, o fim – se vai dar certo ou não –, mas o significado que conferimos ao processo, o que ele diz de nós, sobre nós. “A Chegada” é um filme inteligente, para pessoas que ainda querem acreditar – o que, em 2016, é um pequeno milagre.

Ciência real

Consultoria. Mesmo “A Chegada” sendo baseado no conto “Story of Your Life”, de Ted Chiang, o diretor Denis Villeneuve fez questão de que toda a ciência mostrada no filme fosse correta, ou possível. Para isso, ele contou com o cientista e tecnólogo Stephen Wolfram, e seu filho Christopher, como consultores da produção. E essa obsessão do cineasta não se restringiu à ciência. A melodia de violino da sequência final é palindrômica, ou seja, soa idêntica de trás para frente.

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