Festival de Brasília

Sobre amar (BH) radicalmente

Produção mineira, “A Cidade Onde Envelheço” faz estreia nacional conquistando público da mostra de cinema

Seg, 26/09/16 - 03h00
Filme. As amigas Francisca (Francisca Manoel) e Teresa (Elizabete Francisca) | Foto: Bianca Aun/divulgação

Brasília. A certa altura de “A Cidade Onde Envelheço”, a portuguesa Francisca (Francisca Manoel) pergunta à conterrânea Teresa (Elizabete Francisca) se Belo Horizonte, onde as duas moram, é “a cidade em que você quer envelhecer”. Ao que a amiga responde: “Eu nunca vou envelhecer”. É um momento sublime do roteiro, e não por acaso o título do longa vem dele, porque conta, em pouquíssimas linhas, exatamente quem essas personagens são.

E o fato de que o filme entende e caracteriza isso tão perfeitamente é o grande segredo de seu sucesso, já que as duas protagonistas são a alma e o coração do longa, que teve sua estreia nacional na noite de sexta, na competitiva de Brasília. “A Cidade Onde Envelheço” é, essencialmente, uma história de amor – ou histórias de amor – não romântico. O amor de Francisca e Teresa, que reavivam sua amizade após 15 anos sem se verem, quando a segunda chega para morar com a primeira em Belo Horizonte. O amor que Teresa vai descobrindo pela capital mineira. E, tão ou mais fundamental, o amor que o público vai nutrindo por essas duas mulheres.

“Mesmo na ficção, a Marília parte do lugar muito forte de documentarista que precisa se interessar, se encantar, por essas pessoas”, revela a diretora-assistente Ana Siqueira sobre sua irmã, a diretora Marília Rocha, que não veio a Brasília porque acabou de dar à luz o filho Chico. Segundo Ana, “A Cidade” nasceu da “história de amor” do encontro de Rocha com a lisboeta Francisca Manoel, que viveu em Belo Horizonte por cinco meses em 2012 e despertou na cineasta a curiosidade pela questão do estrangeiro na capital mineira, algo não muito comum.

“O filme tem um pouco de autobiográfico porque Marília vem de outro Estado e se sentia meio estrangeira em BH também”, considera Manoel. O roteiro parte desse, e de vários outros encontros reais, para construir uma ficção cômica sobre o choque de opostos, um yin e yang que se completa de maneira deliciosa na tela. Francisca é séria, seca, pragmática e introspectiva. Já Teresa é solar, verbal, expansiva e despreocupada. As duas não combinam muito no início, mas como elas mesmas discutem em uma cena, o tempo do amor e o lugar que as pessoas preenchem em nós é algo “complicado de explicar”.

“Nosso encontro no filme foi o encontro na realidade porque não nos conhecíamos e fomos ficando íntimas ao longo da produção, como duas amigas que não se veem há 15 anos”, conta Manoel. Além disso, as filmagens foram a primeira vez de Elizabete Francisca no Brasil, assim como sua personagem Teresa. “O momento que chego na casa da Francisca foi a primeira vez que entrei ali, para ter esse olhar mais natural”, revela a atriz, selecionada num casting em Portugal, entre 30 candidatas. O próprio background de cada uma informa muito a presença das personagens em cena: Manoel nunca tinha atuado, e Elisabete vinha da improvisação, mas fazia seu primeiro filme.

E as duas usam exatamente a liberdade de improvisação dada por Marília para extrair um humor muito natural e humanista do choque pessoal entre as duas mulheres, e cultural delas com o Brasil. “As situações e seus aspectos cômicos já estavam no roteiro, mas o modo como elas travam essas conversas e o tom do diálogo é delas”, revela Siqueira. Momentos como Francisca reclamando de brasileiros “folgados que pedem cigarro no ponto de ônibus”, ou quando as duas comentam sobre azulejos de um apartamento, levaram o público do Cine Brasília às gargalhadas. “Na improvisação, tem um pouco de nós, da ironia de um ponto de vista pessoal, mas exagerado. Que bom que vocês viram como comédia e não se ofenderam”, confessa Manoel.

E esse olhar cômico e humanista, que capta o humor e o melancólico do cotidiano, revela na tela uma Belo Horizonte talvez nunca tão apaixonante no cinema. Ao invés de buscar um olhar turístico, o longa investiga como e quando uma cidade se torna uma parte de você. Francisca diz que sente falta do mar de Lisboa, de “sentir o sal na pele”. E viver em uma cidade é isso: ela virar parte do seu corpo. Por isso, Marília filma no apartamento das duas no Centro, nas ruas lotadas ao redor, na Benfeitoria, no Parque Municipal, no Maletta – esses pedaços da capital que compõem a vida de quem realmente habita nela.

Mas sentir-se parte de uma cidade também é ter uma comunidade ali. É ter a família que você constrói sem precisar casar, uma rede de apoio. E o filme mostra perfeitamente o que isso significa em Belo Horizonte, a roça grande, na cena em que uma personagem espera o ônibus e passa alguém que ela conhece. Se isso nunca te aconteceu, você não mora aqui.

Esse senso de intimidade e de se familiarizar pelo contato humano, porém, é totalmente materializado na relação de Francisca e Teresa, e como ela é filmada pela linda fotografia de Ivo Lopes Araújo. Marília Rocha tem aquele talento exclusivamente feminino de enxergar e saber filmar a beleza dessas duas mulheres, não ignorando o sensual, mas sem jamais erotizá-las. Mas é a competência de Araujo ao dançar um balé com as duas atrizes em cena que vai construindo a aproximação gradual e a afinidade das protagonistas. “Criamos uma relação muito próxima. Era como se a câmera do Ivo também tivesse presença, fosse uma de nós”, reconhece Elisabete.

Isso só foi possível porque o longa não foi decupado previamente. As duas atrizes tinham total liberdade de movimentação em cena, ressaltando essa ideia de domínio e autonomia na sua cidade, no seu lugar. “Elas não tinham que se adequar à câmera e ao som, mas o contrário. Isso gerou uns takes de meia hora, e eu pensava como a gente ia montar o filme”, confessa Siqueira. O desafio foi ainda maior com a locação em um apartamento mínimo, onde só cabiam as atrizes, a diretora, Ivo e o microfonista. Francisca Manoel, no entanto, não se arrepende. “Fico pensando 'será que a gente não pode fazer esse mesmo filme de novo, com as mesmas pessoas?'”, respondeu a portuguesa, quando perguntada se vai seguir a carreira de atriz.

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