Cinema

Tragédias reais em Berlim

Novo longa de José Padilha, '7 Dias em Entebbe', e 'U-July 22', de Erik Poppe, recriam fatos que abalaram o mundo

Ter, 20/02/18 - 03h00

BERLIM, ALEMANHA. Ao apresentar seu novo filme no Festival de Berlim, o diretor brasileiro José Padilha rebateu as críticas de que a obra suaviza a imagem dos personagens principais, dois alemães pró-Palestina que sequestram um avião cheio de passageiros israelenses. “Terroristas também têm consciência. Cometeram algo inescusável, errado, mas são seres humanos, e eu tinha de retratá-los como tal”, disse após a sessão de “7 Dias em Entebbe”, produção anglo-americana que teve sua estreia mundial, nesta segunda-feira (19).

Não fosse o fato de o cineasta carioca ter assumido o projeto quando ele já existia, o filme poderia se passar por uma obra realmente idealizada pelo diretor de “Tropa de Elite” e “Ônibus 174”. Estão lá, como em seu longa mais famoso, os dilemas sobre os limites do uso da força, o argumento militarista e as zonas cinzentas dos polos em disputa. Com essa sua nova produção, Padilha volta à competição do Festival de Berlim, mas dessa vez sem disputar o Urso de Ouro, prêmio que ele levou em 2007 com a primeira parte de sua saga sobre o Capitão Nascimento.

O novo filme reencena um caso real ocorrido em 1976, o sequestro de um avião da Air France lotado de passageiros israelenses por militantes pró-Palestina e seu desvio para a cidade ugandense de Entebbe. Entre os sequestradores estavam dois alemães, Wilfried Böse e Brigitte Kuhlmann, vividos no filme por Daniel Brühl (“Adeus Lênin”) e Rosamund Pike (“A Garota Exemplar”), respectivamente.

É sobre ambos os personagens que o filme deposita a maior parte do peso da trama. Ingênuos e despreparados para a possibilidade de derramar sangue, os dois se batem com as contradições da empreitada; estão engajados na luta pró-palestinos, mas cedo se nota que eles não têm a frieza emocional necessária.

O filme contrapõe as motivações da dupla de alemães das razões que impelem seus parceiros do Oriente Médio. Os palestinos o faziam por causa conflito, aquilo era pessoal e visceral. Os outros vinham de uma tradição da esquerda dos anos 70, o faziam pelo marxismo, pela ideia, afirma o cineasta brasileiro. Os reféns desafiavam a motivação de Böse e o acusavam o nazista, o que é a última coisa que alguém de esquerda daquela época gostaria de ser acusado. E ele tentava a todo custo se afastar dessa impressão.

Dinâmica. Longe do cenário do atentado, na cúpula do governo israelense, o diretor cria um thriller de gabinete. O premiê Yitzhak Rabin (Lior Ashkenazi) e seu ministro da Defesa, Shimon Peres (Eddie Marsan), também enfrentam seus próprios xadrezes políticos e estratégicos ao discordar um do outro sobre a operação militar de resgate dos passageiros.

“Quando se olha a dinâmica entre os dois, você percebe a dificuldade de dialogar em Israel”, diz o diretor. Já o ditador ugandense Idi Amin (Nonso Anozie), que na trama espera barganhar com as potências ocidentais por meio do episódio, é retratado com direito a todos os seus aspectos folclóricos já explorados no cinema. É praticamente o alívio cômico do filme.

Padilha acrescenta ao caldo da querela árabe-israelense questões como culpa alemã, utopia esquerdista e sionismo, mas sem tomar partido. Acaba costurando uma obra que pode, como notou a revista norte-americana “The Hollywood Reporter”, irritar o atual primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. É que ao mostrar a operação, a trama destoa da versão defendida pela família do premiê, segundo a qual Yoni, militar e irmão mais velho do premiê, foi chave no resgate e morreu sob fogo palestino. No filme de Padilha, além de seu papel ser bem menor , ele é alvejado por ugandenses. “Não é uma história que vai agradar a Netanyahu”, disse à publicação o historiador Saul David, cujo livro inspirou o roteiro.

Padilha comentou as contradições e disse que se inspirou no relato daqueles que efetivamente participaram da operação. A minha versão é aquela dos que estavam lá, as testemunhas visuais. O episódio já foi mote do filme israelense Operação Thunderbolt (1977), que teve o mitológico ator Klaus Kinski no papel de Böse. (Guilherme Genestreti)

 

Perturbador, 'U-July 22' recria massacre em camping juvenil

BERLIM, ALEMANHA. Quase sete anos após a tragédia, o filme “U-July 22”, apresentado nesta segunda-feira no Festival de Cinema de Berlim, reconstitui o ataque na capital norueguesa e o massacre de Utoya realizado pelo neonazista Breivikm, revivendo em tempo real o drama dos jovens noruegueses a partir de seu ponto de vista. Muito aguardado, o filme em competição pelo Urso de Ouro, foi exibido alguns dias depois de um dos piores tiroteios da história norte-americana moderna, com 17 mortos em uma escola na Flórida. Consciente de reabrir feridas em seu país, o diretor Erik Poppe justificou sua abordagem à imprensa. “Se esperarmos até que não doa mais, será muito tarde. É difícil, mas deve ser parte do processo de cura”, explicou.

Em 22 de julho de 2011, disfarçado de policial, o extremista de direita Anders Behring Breivik caça por mais de uma hora em um acampamento de verão da Juventude do Partido Trabalhista e mata 69 pessoas, principalmente adolescentes. Sem jamais ter expressado remorso, ele justificou seus crimes, os mais graves na história pós-guerra na Noruega, pelo fato de que suas vítimas abraçavam o multiculturalismo.

Para Erik Poppe, ex-fotógrafo de guerra, a ideia do filme nasceu porque “a memória do que aconteceu nessa ilha desapareceu”, ofuscada pelas muitas provocações de Breivik e pelo debate sobre um memorial dedicado às vítimas.

Massacre. O norueguês rapidamente descartou a ideia de um documentário. “Com uma ficção, podemos ser capazes de contar algo mais próximo da realidade” do que concentrando-nos em alguns depoimentos. Foi ao consultar sobreviventes e parentes das vítimas que começou a construir uma história “inteiramente do lado dos jovens”, com longas tomadas, incluindo uma sequência de 72 minutos, do ponto de vista de uma personagem. O tempo exato do massacre na pequena ilha, localizada ao Noroeste de Oslo.

Um elemento que convenceu a atriz de 19 anos Andrea Berntzen a se envolver no projeto. Por uma hora e meia, o filme segue a personagem que ela interpreta, Kaja, uma garota que cuida de sua irmã Emilie, e que não para de procurá-la assim que ouve os primeiros tiros. Do massacre, o filme não mostra quase nada, com exceção de jovens feridos ou morrendo. Ele se concentra nos sons assustadores e nos sentimentos dos jovens que lutam pela sobrevivência na ilha. Do atirador, apenas vemos uma silhueta à distância.

Para evitar acordar memórias dolorosas, o filme foi filmado em uma ilha perto de Utøya, mas não no local, com atores principalmente amadores. Outros projetos estão em andamento sobre este drama, incluindo uma série de seis episódios na Noruega sobre o destino daqueles que foram indiretamente afetados. A estreia está programada para 2019.

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