Literatura

Um olhar entre o humor e a crítica 

Angélica Freitas, autora gaúcha, abre espaço na poesia atual para tratar de temas como as questões de gênero

Sáb, 28/03/15 - 03h00

Em 2006, quando terminou o seu primeiro livro, “Rilke Shake”, Angélica Freitas, 42, tinha há pouco deixado as redações de jornal para se dedicar à literatura. O título, publicado pela Cosac Naify no ano seguinte, apresentou uma autora que parecia entusiasmada com os jogos de palavras e com uma poesia fortemente marcada pela musicalidade. Somava-se a isso o humor e um tom crítico disparados, principalmente, contra o padrão atribuído ao sexo feminino, o que também transparece em seus textos.

Na época, o frescor daqueles versos provocou uma receptividade que ela não imaginava. “As respostas ao ‘Rilke Shake’ foram surpreendentes. Eu não achei que ele seria tão lido e comentado. Era meu primeiro livro, e eu me via como uma voz entre outras diversas. Realmente não achava que ele fosse receber mais atenção do que qualquer outro trabalho que estava sendo lançado no mesmo período por diversos outros poetas”, recorda Angélica Freitas.

Dali em diante, ela diz ter se entusiasmado e deu vazão ao processo de escrita que a levou ao segundo título, “Um Útero É do Tamanho de Um Punho” (Cosac Naify). A obra, que saiu em 2012 e venceu o prêmio de melhor livro de poesia eleito pela Associação dos Críticos de Arte de São Paulo, tem a questão da mulher como principal eixo temático. “Ainda que não tivesse tido um retorno positivo do meu primeiro livro, eu teria feito o segundo, porque mais determinante do que a avaliação dos outros para mim foi a vontade de continuar investigando as possibilidades da poesia”, afirma Freitas.

Paralelamente a esse objetivo, a escritora experimentou outro caminho e roteirizou “Guadalupe”, novela gráfica que veio a público, também em 2012, pela Companhia das Letras. As ilustrações foram assinadas pelo quadrinista Odyr, conterrâneo dela da cidade de Pelotas (RS).

Em comum com o seu mais recente volume de poesia, o quadrinho coloca em primeiro plano assuntos que tocam o universo feminino ao narrar a trajetória de Guadalupe. Na trama, a personagem, acompanhada pelo tio travesti, tenta dar um enterro digno a avó Elvira, que queria ser sepultada na cidade de Oaxaca, no México. “Eu escrevi ‘Guadalupe’, entre 2009 e 2010, quando já estava com a ideia de escrever sobre mulher. Eu pensava que tinha que abordar isso, o que foi uma coisa que aconteceu ao mesmo tempo em que surgiram os poemas de ‘Um Útero É do Tamanho de Um Punho”, conta ela, que concebeu o roteiro da narrativa gráfica após uma viagem ao país citado na ficção.

Se em “Guadalupe” já se percebe a maneira como a autora incorpora a temática ressaltada por ela, em “Um Útero É do Tamanho de Um Punho” suas ideias e percepções sobre como a sociedade encara a mulher ganham ainda mais densidade. Freitas frisa que foi após uma leva de escritos, a começar com o poema “A Mulher É uma Construção”, que outros foram surgindo até ela ter certeza da possibilidade daquele conjunto circular, alcançando os leitores.

“Nesse, eu começo a brincar com essa história de a mulher ser uma construção e a comparo com um conjunto habitacional que deveria ser tudo igual, tudo rebocado, só muda a cor. Depois desse, eu vi que poderia escrever muito mais, ele foi um poema meio detonador de todos os outros”, afirma.

As considerações que ela leva para o papel surgem não só de suas observações do comportamento das pessoas, mas especialmente a partir de suas experiências. “Eu acho que existe uma pressão meio velada para tu se conformar com um modelo do que é feminino. Então, pra tu ser mulher deveria corresponder a um jeito de ser mulher, a um jeito de se vestir, e até a um jeito de falar, com uma certa inflexão, e tudo isso é aprendido. Ao contrário disso, eu gosto de usar roupas unissex. Então, em muitas ocasiões da minha vida eu me senti reprimida. Como eu sou gay, isso já é um fator de estranhamento. Mas só por que eu não sou heterossexual significa que eu sou menos mulher?”, questiona Freitas.

Poema

Porque uma mulher boa

É uma mulher limpa

E se ela é uma mulher limpa

Ela é uma mulher boa há milhões, milhões de anos
 

Pôs-se sobre duas patas

A mulher era braba e suja

Braba e suja e ladrava

Porque uma mulher braba

Não é uma mulher boa

E uma mulher boa

É uma mulher limpa há milhões, milhões de anos
 

Pôs-se sobre duas patas

Não ladra mais, é mansa

É mansa e boa e limpa

( Texto extraído do livro “Um Útero É do Tamanho de Um Punho”)

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