Encontro

Um olhar voltado aos afetos 

Filósofo Vladimir Safatle participa nesta terça-feira (1º) do Ciclo de Conferências Mutações, no auditório do BDMG Cultural

Ter, 01/09/15 - 03h00
Safatle pretender abordar assuntos que vão estar presentes no seu próximo livro “Circuito dos Afetos” | Foto: Divulgação

Autor de livros que versam sobre temas relacionados à filosofia, à arte, à psicanálise e à política, Vladimir Safatle prepara o lançamento, em breve, do seu novo título “Circuito dos Afetos”, pela editora Cosac Naify. Convidado para participar do Ciclo de Conferências Mutações, do BDMG Cultural, o filósofo faz hoje, em Belo Horizonte, no auditório desse espaço, uma palestra a partir do tema “O afeto como utopia”. Ele ainda aproveita a oportunidade para apresentar algumas das ideias a serem discutidas nos ensaios do próximo volume.

Além de detalhar a linha de pensamento que motivou a sua recente escrita, na entrevista a seguir, o professor da USP defende também uma revisão de valores e perspectivas, o que, ao seu ver, pode ampliar a compreensão de determinados arranjos e desafios contemporâneos.

Em que se baseia o livro “Circuito dos Afetos”?

Esse é um livro sobre filosofia, política e teoria dos afetos. É uma tentativa de recuperar uma tradição, que vem de Hobbes, Spinoza, e possui a questão dos afetos como algo central para se compreender a natureza dos vínculos sociais e políticos. Quais são os afetos que as pessoas produzem? Eu quis retomar essa discussão articulando, assim, problemas ligados à psicanálise e à filosofia contemporânea.

Por que o interesse em promover esse tipo de interlocução?

Normalmente, se costuma pensar a política como uma forma de circuito dos bens e das riquezas e em como essas coisas circulam. Eu queria mostrar como a política também envolve uma questão de circulação de afetos, e há alguns afetos, que, ao circularem, determinam os nossos campos do que é possível e do que não é possível. A modificação do que é visto como possível e impossível, por sua vez, pede que certos afetos comecem a circular, se produzindo, assim, outras formas de subjetividade e outros tipos de capacidade de percepção. A ideia fundamental é que, quando você parece não operar nenhuma transformação, talvez seja porque os afetos que organizam a sua experiência, de uma certa maneira, se paralisaram também. A questão toda é entender como ser afetado de outra forma. Nós estamos percebendo que tentar analisar a sociedade como um sistema de normas, leis e regras é algo muito limitado. É preciso entender as sociedades como circuitos de afetos e essa é uma perspectiva que precisa ser paulatinamente construída.

Como essa questão se relaciona com a ideia de utopia?

O mote central da conferência é mostrar como nós não precisamos de um tempo das utopias. Há uma tendência no meio tradicional de se imaginar que uma política de transformação só é possível se há uma utopia no seu horizonte. Eu quero insistir que isso não é verdade. O tempo da utopia é marcado pela expectativa de que um bem ocorra. Por isso, esse tempo da expectativa tem um afeto central que é a esperança. Normalmente, se acredita que a esperança é um afeto fundamental para haver transformação. Novamente, eu quero insistir que isso não é verdade. A esperança tem uma relação muito profunda com outro afeto que nos paralisa que é o medo. Ela é a expectativa de um bem que pode ocorrer no futuro e isso também envolve o receio de talvez o que é desejado não ocorra. Não há esperança sem medo e vice-versa. Uma reflexão política interessante seria partir da ideia de que talvez nós não precisamos mais de uma percepção baseada nem no medo nem na esperança.

Qual seria uma alternativa a isso?

Existe uma ideia de Freud que é o desamparo como afeto social. Mas não no sentido de que eu entro no vínculo social afirmando um certo desamparo, mas sim com a compreensão de que não há uma figura que possa me amparar. Na verdade, o que nos desampara normalmente é aquilo que não controlamos, ou seja, aquilo que é contingente. Então, de uma certa forma, existe uma política que procura controlar a contingência. Talvez agora se comece a discutir outra forma de política que seja capaz de afirmar e construir a partir das contingências. Para sintetizar, eu diria que não precisamos de uma nova utopia, mas de uma visão complexa das tensões e das tendências que operam no presente.

Em relação ao controle dos afetos, como você percebe o uso que se faz do medo e da esperança na configuração da opinião pública, por meio dos discursos?

Hoje em dia é impossível compreender os discursos políticos mais fortes sem entender como eles mobilizam esse diálogo entre o medo e a esperança. Se tem medo da insegurança econômica, da imigração, da possível perda da identidade. Tudo isso vem sendo mobilizado nos discursos dos últimos 15 anos de uma maneira evidente. Por outro lado, permanece como se fosse uma contraposição a necessidade de ter esperança em algum tipo de utopia. É por isso que nós não estamos conseguindo produzir uma grande transformação. Não há mais utopias, na verdade. Essas articulações que parecem ser muito opostas, na verdade, são muito complementares. Todo o segredo parte de saber escapar tanto de uma quanto da outra.

No livro “A Esquerda que Não Teme Dizer Seu Nome”, você discutiu a proposta de ser “indiferente às diferenças”, o que causou certa polêmica. Você revê essa noção hoje?

Eu aprofundei a ideia. Acho que ela estava correta. Eu queria insistir que o contrário da identidade não é a diferença, o contrário da identidade é a indiferença. Eu queria escapar da política das identidades, porque ela é uma política defensiva necessariamente e estática porque se vai dizer: nós fazemos parte de um grupo, nós temos traços atribuídos em comum e esse espaço nos determina, esse é o espaço que queremos conseguir para conservar essa nossa característica. Isso nunca pode ser diferença, porque é organização das identidades num campo comum. As diferenças se tornaram estratégias multiculturalistas, tentativas de esquadrinhar o campo do comum em várias identidades que vão sendo tratadas de maneira fixa. E eu acho que o resultado disso é o que estamos vendo hoje. Há a criação de um certo tipo de sensibilidade no qual a diferença do outro é vista como alguma coisa que coloca em xeque a minha própria identidade. Por que há discursos inacreditáveis, reações tão viscerais contra a proposta de casamento igualitário, já de uma maneira ou de outra ela não deveria tocar aqueles que não se interessariam por esse tipo de casamento? Porque as pessoas veem isso como se fosse uma violência contra a identidade que elas procuram de uma maneira ou de outra preservar. Então, eu acho que dentro desse contexto, a única saída real é pararmos de tentar, de uma certa maneira, politizar a cultura, as diferenças culturais. Isso não significa que vamos anulá-las, mas vamos tentar criar um espaço em que qualquer diferença cultural possa entrar. Mais que isso, um lugar onde essas diferenças vão estar dispostas de uma maneira, que, ao fim, resultaria em indiferença. A grande tarefa da sociedade contemporânea é chegar no estágio em que as diferenças soem indiferentes porque as pessoas são capazes de aceitar todas elas.

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