Perfil

Uma luta cotidiana contra intolerância e preconceitos

Zeneida Lima relembra histórias da época em que foi acusada de ‘feiticeira’

Ter, 21/11/17 - 02h00
Dona Zeneida (a quinta da esq. para a dir.) pratica a pajelança e luta por manter preservada a cultura de seus antepassados. | Foto: Carla Dias / divulgação

SOURE, PARÁ. Combater a intolerância e apresentar a diversidade religiosa presente no Brasil. Esses são os principais motivos pelos quais o filme sobre Zeneida Lima é tão necessário. A pajé rememora um episódio de intolerância ocorrido há 20 anos, que quase a levou à morte.

“Foram cerca de 300 pessoas à porta da minha casa querendo me matar. Foi na época em que tinha lançado meu livro e fui para Pernambuco fazer um tratamento. Um político daqui me viu no avião, me tratou com amabilidade, mas, quando voltou, disse: ‘Essa dona Zeneida é comunista, ela come crianças’. E, como, na época, um menino, filho de um vereador, tinha morrido afogado, disseram que fui eu quem fiz algo para ele se afogar. Então, eles vieram para a rua com carro de som dizendo: ‘Vamos matar a feiticeira e a família dela’”, relembra.

O acontecimento, aliás, ganhou um capítulo no livro que Zeneida está escrevendo e que deve ficar pronto em breve. Em “Herdeiros da Inquisição”, a pajé conta tudo o que ocorreu naquela época e como superou aquele período. “Não dá para acreditar que no século XX aconteceu isso”, observa.

A intolerância também pesou no momento de conseguir patrocínio para o filme. A obra foi filmada em 2008 e ficou pronta em 2014, mas só pôde ser lançada neste ano por causa do baixo orçamento. Inicialmente estavam previstos R$ 10 milhões para serem gastos, mas a obra foi produzida com pouco mais de R$ 6 milhões. “Ninguém estava investindo em um filme sobre uma pajé. No primeiro projeto que apresentamos aos escritórios de marketing havia a frase: ‘A vida da pajé Zeneida Lima, que é educadora, ambientalista e poetisa’. Naquele ano, não apareceu nenhum tostão. A gente achou estranho e resolveu acrescentar a informação de pajé apenas no fim da descrição. Foi só então que apareceu o primeiro investimento”, conta.

A estreia de “Encantados”, portanto, é, para Zeneida, um acalento. “Esse filme veio como um reconhecimento, para mostrar que eu não sou uma feiticeira como eles mostravam. Eu fiquei muito feliz. É uma bênção da natureza”, conta ela.

Preservação histórica. Peças de cerâmica encontradas na ilha de Marajó representam uma atividade indígena que data de mil anos antes de Cristo, e historiadores relatam que os índios viviam em uma sociedade bem avançada, inclusive culturalmente, já que produziam peças de cerâmicas, denominadas “marajoaras”.

Dona Zeneida é uma das poucas locais que pratica a pajelança e luta por manter preservada a cultura de seus antepassados. Ela é proprietária e administradora da Instituição Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia, com sede em Soure. O local foi criado em julho de 1999 para desenvolver e disseminar a cultura da ilha de Marajó. Além disso, a instituição criou a Escola Zeneida Lima de Araújo – antiga Escola de Ensino Fundamental Maria Isabel Castro Amazonas –, que atende 260 crianças das comunidades carentes da ilha de Marajó.

“Meu pai era um homem muito rico e um advogado criminalista. Mas, ainda assim, tudo o que tínhamos na nossa casa era regrado. Um dia, ele chamou uns meninos para roçarem a nossa casa. Como eles não fizeram, meu pai bateu muito neles. Eu vi aquilo e pensei que, um dia, faria algo para que não faltasse mais nada para ninguém. E, hoje, eu consegui”, conta Zeneida, com a voz embargada.

A jornalista viajou a convite da produção do filme.

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