Teatro

Uma viagem através do vazio 

Cia Club Noir, de São Paulo, apresenta “Tríptico Beckett”, levando ao Cine Brasil os três últimos textos do autor

Sex, 24/10/14 - 03h00
Cena. Nathalia Timberg é uma das atrizes que vivem a protagonista do espetáculo | Foto: Rafael Avancini/divulgação

Ao longo dos anos, foi criada uma acepção de como se encenar o dramaturgo irlandês Samuel Beckett. O clichê geralmente redunda em torno da imobilidade cruel de seus personagens, que não fazem “nada” em cena, mas por meio desse “nada” suscitam questões relacionadas à condição humana. A atmosfera é pesada, os diálogos muitas vezes não dizem “nada” e trazem um conteúdo absurdo, alcunha que ganhou o teatro feito por Beckett, Ionesco e outros autores.

Numa via paralela, o espetáculo “Tríptico Beckett” se inspira nos últimos três textos escritos pelo dramaturgo irlandês para reverenciar sua obra evitando caminhos já trilhados por outras produções. O resultado dessa investida será apresentado amanhã e domingo, no Cine Theatro Brasil.

“Como encenador, sabia que um dia teria que dialogar com a obra de Samuel Beckett, um dos maiores autores da história, criador de uma poética radicalmente singular, que levou o teatro a um lugar de redução e subtração nunca antes tocado. Mais do que contar histórias ou caracterizar personagens, ele desenha paisagens sensoriais e nos convida a visitar esses estranhos lugares. Suas figuras em cena são personificações de toda a humanidade”, analisa o diretor Roberto Alvim, que preferiu desviar-se de textos mais conhecidos como “Esperando Godot” ou “Fim de Partida”.

Os textos escolhidos pelo diretor foram “Para o Pior Avante”, “Companhia” e “Mal Visto Mal Dito”, os quais formam uma espécie de trilogia final de Beckett.

“Percebi que esse material se configurava como uma espécie de testamento artístico: esses três textos constituem uma síntese das principais questões estéticas e existenciais de Beckett, promovendo uma visão panorâmica de sua obra. Eles nunca haviam sido encenados, juntos, no Brasil. Compreendi que, com essa trilogia, poderia dar uma contribuição original sobre o autor, ampliando a visão sobre ele”, diz Alvim.

Em cena, as atrizes Nathalia Timberg, Juliana Galdino e Paula Spinelli vivem uma mesma mulher em momentos distintos da vida: infância, maturidade e velhice. O processo de criação do espetáculo, garante o diretor, não teve nenhuma outra montagem específica como inspiração.

“Meu trabalho, nesta ou em qualquer outra obra, busca sempre a singularidade. Nesse sentido, não me norteio pelas criações de outros encenadores. Meu diálogo se dá diretamente com Beckett: o inconsciente do autor está materializado na estrutura textual, e é com esse inconsciente que vou dialogar. Minhas respostas cênicas não repetem nenhum clichê acerca de ‘como se deve montar Beckett’. Ao contrário: as atrizes se movem pouco porque a principal ação em Beckett é a fala, isto é: o modo como se cria tempo, espaço, imagens, sensações e presença por meio da fala. O tempo não é ‘dilatado’: elas modelam o tempo de inúmeras formas ao longo da encenação, de acordo com o que é solicitado a cada instante pelo texto”, garante.

Foi justamente o trabalho das três atrizes que fomentou o processo criativo de “Tríptico Beckett” e deu vida à sua obra. “Para mim, tratava-se de revivificar a obra de Beckett, instaurando uma paisagem iconográfica nova que pudesse renovar nosso espanto diante de suas proposições estéticas excêntricas. Eu precisava encontrar de que modo seu jogo cênico podia ser traduzido e expandido através de procedimentos distantes de certos clichês presentes nas encenações feitas nas últimas décadas, e ainda assim manter-me fiel ao lugar pulsivo proposto pelo autor”, revela.

Necessidade. Considerado um autor clássico, Beckett eterniza sua importância por meio das diversas leituras e releituras que recebe de sua obra. O trabalho do Club Noir é mais um que se arrisca na seara do absurdo beckettiano. Mas por que montar Beckett até hoje?

“Assim como Ésquilo, Shakespeare ou Nelson Rodrigues, ele é um autor que precisa ser sempre encenado: o que esses criadores nos revelam sobre a natureza do real e sobre a condição humana é inesgotável, ilumina nossa jornada. No caso de Beckett, trata-se do dramaturgo que nos conduz por uma viagem através do vazio: a vida, Beckett sabe, não tem significado. Mas isso não significa niilismo, ao contrário: Beckett nos propõe o fim do jogo do sentido, visando a abertura de outros jogos, nos quais a existência se transfigura poeticamente. Ele nos confronta com a morte, a finitude, o implacável, e nos leva a redefinir o modo como vivemos. Beckett nos mostra o nada que brilha em tudo o que existe. Sua escuridão é absolutamente vigorosa”, defende o diretor.

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