ENTREVISTA

Visões claras do complexo 

José Miguel Wisnik. Músico, compositor e ensaísta

Dom, 01/05/16 - 03h00

Um dos principais artistas brasileiros, o pensador paulista traçou uma reflexão sobre o conturbado momento do Brasil contemporâneo, abordando impeachment, o conceito de “analfabetos essenciais”, a música dissipada fora das grandes indústrias, e uma revolução que ele só acredita poder ser feita por gente que consegue humanizar a vida, assim como a cadela Baleia de Guimarães Rosa.


Aproveitando suas inquietações artísticas, humanas e abertura a reflexões, assim como também seu viés pedagógico e o momento conturbado do Brasil, você acredita que viver é estar em constante crise? É cair e levantar?

Acredito que sempre se vive em crise, no sentido de crise como conflito, incerteza, sofrimento e transformação envolvidos. Embora a harmonia seja sempre desejável – e é preciso saber promovê-la e desfrutá-la –, acho que os momentos em que tudo parece estar bem são mais ilusórios do que os momentos de crise, em que problemas estão expostos.

Você nota um desencanto na sociedade brasileira? Como isso afeta as artes? Ou ainda, o que podemos aprender por meio dessa fase atual?

Antes de falar em desencanto, de maneira genérica, quero dizer que me incluo entre aqueles que, mesmo sendo críticos do PT e do governo, veem no impeachment uma afronta à democracia. Considero os argumentos pró-impeachment, eles mesmos, uma pedalada jurídico-legislativa sem a legitimidade necessária para desautorizar o voto, levada adiante por políticos falsamente ilibados e amplificados por uma grande mídia com pretensões, como eu nunca tinha visto antes, a promover a opinião única. A complexidade da situação não deixa ver saídas claras, no momento, embora prometa saídas enganosas. Diante disso, acho que o importante é não cair no sentimento de desilusão, mas saber encarar o real daquilo que se apresenta.

O que se evidencia no momento político que vivemos no Brasil: temos uma política que não pensa o homem ou que reflete exatamente o que o homem é?

Se pensarmos esse homem como o “homem cordial” brasileiro, na definição de Sérgio Buarque de Holanda, diremos que ele se caracteriza por misturar o público e o privado, submeter o interesse coletivo ao interesse particular, confundir a lei com o privilégio, e agir de maneira tanto afável quanto truculenta, tanto informal quanto arbitrária. É claro que essa interpenetração existe em outros países, mas estou falando no grau e na centralidade dessas práticas no Brasil. O que está acontecendo agora reflete a profundidade dessa síndrome. Inventar para ela um único culpado é mascará-la e aprofundá-la em si mesma.

A música é tanto lugar de expressão de dores e angústias quanto, digamos, trilha que acompanha estes momentos. A música pode ser um componente que auxilia na compreensão da vida? (“Se Meu Mundo Cair, Eu Que Aprenda a Levantar”, por exemplo, é um verdadeiro ensinamento).

A frase da minha canção é “se meu mundo cair / eu que aprenda a levitar”, o que faz uma certa diferença. A música se refere à famosa canção de Maysa, “Meu Mundo Caiu”, onde, lá sim, se diz “se meu mundo caiu / eu que aprenda a levantar”. Levantar ou levitar, de todo modo, são maneiras de expressar a pergunta sobre de onde a gente retira nossas forças, quando elas parecem faltar. .

Já sabemos que, nos dias atuais, não temos revelações de grandes nomes da música como já tivemos anteriormente. São outros tempos com outras características, com lamentações para uns e aceitação para outros. Dentro do que mudou no campo musical – acesso aos meios de produção, difusão, aceleração da produção e também da fruição –, esse componente de compreensão da vida pela música recebe interferências dos novos contextos de produção musical?

Como já foi dito muitas vezes, os discos não se produzem mais nos grandes estúdios da indústria fonográfica, que eram correspondentes às fábricas. É possível gravar de maneira muito mais ágil, e jogar na rede, onde se encontra de tudo. É um modo muito mais descentralizado de produção e difusão. A música feita no Brasil continua sendo riquíssima e muito diversificada. Veja-se por exemplo o impactante CD de Elza Soares, “A Mulher do Fim do Mundo” (lançado em 2015), com canções de compositores que não estariam entre os chamados “grandes nomes”: Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Douglas Germano. E Elza, genial, que consegue ser ao mesmo tempo a mais velha e a mais nova das cantoras brasileiras. Acho, no entanto, que o ambiente cultural brasileiro, a resposta crítica, o debate intelectual, se encontra diminuído e depauperado por um agravamento do baixo letramento médio brasileiro, certamente ligado a décadas, já, de desqualificação da escola pública. Já somos um país não só de analfabetos funcionais, mas de analfabetos essenciais, presentes em toda parte, no alunado jovem, na classe política, na mídia, nos agentes culturais, e portanto em nós todos, os incapazes de ler, no sentido literal e no sentido mais complexo: de acompanhar um raciocínio que não seja dicotômico e excludente, de pensar uma definição que não seja classificatória e redutora, de assimilar uma ideia que não seja clichê.

Você já disse em outros momentos que suas grandes parcerias musicais são as mulheres. A revolução será feminina? O que o mundo tem aprendido com todo esse outro movimento feminista que tem ganhado novos ares e novas forças?

Eu estava me referindo especificamente às cantoras. Tenho grandes parceiros também, além das parceiras, nas composições, nos trabalhos para teatro, cinema e dança. Acho que a revolução se dá na relação entre as pessoas, quando elas se tratam como gente, sejam homens, mulheres ou transgêneros, seja qual for o papel e a classe social que suportam, a cor da pele. Para ser gente, bem gente, capaz de compartilhar com o outro a dor e a alegria de existir, é preciso sentir ainda a natureza como gente, e os bichos como gente, muito gente, como eles são, por exemplo, em Guimarães Rosa e em Clarice, ou na Baleia de “Vidas Secas” de Graciliano.

Qual a maior pobreza humana?

A burrice afetiva, a miséria sexual que faz projetar sobre os outros, na forma da intolerância, os próprios medos, a peste emocional que faz odiar quem goza do gozo da vida, aquilo que Oswald de Andrade chamava de “baixa antropofagia”.

Olhando para o Brasil, hoje, seu sentimento é de pessimismo ou otimismo?

Nunca fui pessimista ou otimista. O meu livro sobre o futebol brasileiro se chama “Veneno Remédio”. O Brasil é uma droga, no duplo sentido da palavra. Como sou afirmativo da vida e do Brasil, no entanto, sou às vezes confundido com um otimista. Tenho paixão pelo real. Estamos nos deparando com algo do real do Brasil, mas com o grande risco de isso ser acobertado e mascarado. Quando, em situações de crise, se inventa um bode expiatório, é porque não se quer mudar. E a grande mudança continua estando na diminuição da desigualdade e na potência da enorme biodiversidade cultural brasileira.

---

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo mineiro, profissional e de qualidade. Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar.

Siga O TEMPO no Facebook, no Twitter e no Instagram. Ajude a aumentar a nossa comunidade.