Música

Ziriguidum contemporâneo

Ignorando a falta de espaços dedicados ao samba em Belo Horizonte, talentosos compositores proliferam na cidade; conheça alguns nomes

Dom, 24/07/16 - 03h00
O samba segue firme e forte em Minas Gerais | Foto: Arte/O TEMPO

“Em Minas Gerais, tem ferro, tem ouro, tutu / Tem gado zebu / Tem, também, umas toadas / Alma sonora das quebradas / Encantos das noites de luar”. Assim cantou Ary Barroso em “Aquarela Mineira”, nos idos de 1950. Mineiro de Ubá e baluarte da música brasileira, ele sentenciara o que, décadas depois, permanece como verdade indiscutível: Minas Gerais tem samba – e dos bons. Corroboram com essa máxima não apenas contemporâneos de Barroso, como Ataulfo Alves e Geraldo Pereira, ou ícones como Clara Nunes e João Bosco, mas também a jovem guarda do samba mineiro, que vem proliferando talentos na atualidade.

Fervorosa, a cena do samba, principalmente em Belo Horizonte, vai além de nomes conhecidos do público, como Dudu Nicácio, Thiago Delegado, Aline Calixto, Gustavo Maguá, Vítor Santana e Lucas Fainblat. “A cena autoral de BH está fortíssima. Aqui é terra de compositores da pesada. Temos nomes incríveis, como Dé Lucas, que eu sou completamente fã, o cara é um professor! Temos o Fernando Bento, o Heleno Augusto, o Tino Fernandes, que tem uma pegada mais rural. O Vini Ribeiro, meu maior parceiro em composições, um ás da melodia”, comenta Fainblat. “Temos excelentes instrumentistas, como Artur Pádua, Gustavo Monteiro, Ricardo Acácio, Robson Batata e por aí vai. É muito bom contar com músicos excelentes para executar, em qualquer formação, espontânea ou ensaiada, suas composições”, completa o cantor.

Um dos coordenadores do Ronco da Cuíca, selo especializado em samba novo de BH, Eduardo Curi concorda. “A qualidade técnica dos sambistas daqui é fenomenal. Fico impressionado como os músicos são bons instrumentistas”, afirma. “Adoro as composições dos sambistas novos. Melodias gostosas de assoviar, letras simples e inteligentes”, completa o produtor, citando nomes como Alexandre Rezende, Tino Fernandes, Marina Gomes, Giselle Couto e Edu Pio.

Para Dudu Nicácio, a capital mineira “tem um plantel de compositores que estão prontos para serem escalados e marcarem gols”. O músico, no entanto, afirma que não há nuances específicas que definam o samba mineiro. “Talvez a coisa da harmonia, da forma de abordar a letra. Mas não tem como colocar cerca numa coisa tão cultural. O samba é brasileiro”, defende. Para Eduardo Curi, o samba do Rio de Janeiro ainda ecoa em Minas. “Acho que falta uma característica definitiva que faça com que alguém do Pará ouça um samba de BH e diga: ‘é mineiro’. A reverência excessiva que se tem ao samba do Rio é uma das causas disso. Talvez o tempo resolva essa questão, dentro de um processo antropofágico”, reflete.

Curi pontua, ainda, que o cenário do samba ainda é muito pulverizado em BH. “Existem turmas específicas, que não são lá muito abertas, mas também não são intransponíveis”, afirma o produtor. Segundo Lucas Fainblat, esse é justamente o ponto que ainda não engatou. “Falta uma confraria de compositores da cidade. Você não vê por aí uma roda de samba que só canta música autoral, em que o cara do tamborim canta uma música do cara do violão, que na sequência puxa aquela brasa que o pandeirista compôs anteontem”, sublinha.

Espaços. Outra bronca dos bambas belo-horizontinos é a falta de casas dedicadas, exclusivamente, ao samba. Todos os entrevistados para esta reportagem concordam que BH carece de espaços para sambistas se apresentarem. Responsável por trazer nomes como Nelson Sargento à cidade no fim dos anos 90, o jornalista Rafael Mendonça afirma que a época de empolgação com o samba passou. “BH viveu esse boom até 2010 e, depois, a poeira abaixou. Hoje, há poucos espaços fiéis ao estilo. Não tem mais aquele furor, de casas lotadas todos os dias. Deixou de ser uma coisa popular e virou um nicho”, afirma.

Para Alexandre Rezende, o fim do modismo deixou, ao menos, uma sequela positiva. “Atualmente, ficou quem gosta mesmo de samba, quem acompanha os trabalhos, quem aceita quando você traz uma coisa nova”, afirma. “Não consigo mais fazer um samba para 300, 400 pessoas, por exemplo. Mas faço para 50, com todas prestando a atenção na música”, defende.

Dudu Nicácio ressalta que o samba em BH vive um retorno às origens. “Houve uma época em que a coisa estava muito quente na zona central, com grupos como Copo Lagoinha e Zé da Guiomar, enquanto, em vilas e favelas, havia uma percepção de que o samba havia esfriado”, relembra o músico, que coordenou, até 2007, o projeto Do Morro ao Asfalto, cujo intuito era movimentar o samba nas periferias. “Hoje, vemos o caminho inverso. Há poucos espaços no asfalto, mas se você for em qualquer quebrada verá sambas maravilhosos”, finaliza.
 

Destaques

Conheça alguns dos novos sambistas de BH
 

FOTO: Alexandre Rezende/Divulgação
Marina Gomes
Marina Gomes

Nascida em Divinópolis, é cantora e percussionista. Integrou o Samba da Silva, ao lado de Alexandre Rezende. No grupo, conheceu músicos de BH e passou a frequentar as rodas de samba. Em 2015, lançou seu primeiro disco, “O Samba é Meu Guia”, que traz composições próprias e de parceiros como Dé Lucas, Serginho Beagá, Toninho Geraes e Dona Eliza.
 
FOTO: Luciano Andrei/Divulgação
Tino Fernandes

Tino Fernandes

Começou sua trajetória na música ainda moleque, tocando percussão em blocos de Carnaval de Sabinópolis, sua cidade-natal. Defensor do samba rural, que traz “letras da roça cantadas em samba”, é compositor, multi-instrumentista, produtor musical, intérprete e professor de música. Tem três discos autorais na bagagem, sendo o mais recente “Samba Sacramentado”, de 2015.

FOTO: Alexandre Rezende / Divulgação
Giselle Couto

Giselle Couto

A cantora, de Mariana, se apaixonou pelo samba ao cursar música na UFOP. Figura carimbada das atuais rodas de BH, ela lança, em agosto, seu primeiro EP. Com fortes influências do samba de raiz, o álbum traz cinco canções autorais, escritas em parcerias com nomes da cena, como Tino Fernandes e Lucas Telles.

FOTO: Rodrigo Capote/Divulgação
Alexandre Rezende

Alexandre Rezende

Foi influenciado pelas violadas da família, em Sabinópolis, e pela obra de Ary Barroso, primo de sua bisavó. Aos 19, montou o Clã do Jabuti, que lotou casas em BH. Ganhou, em 2013, o concurso Novos Bambas do Velho Samba e passou uma temporada na casa Carioca da Gema, na Lapa. Entusiasta do samba rural e sincopado, o cantor prepara seu primeiro disco autoral.

FOTO: Pablo Bernardo/Divulgação
Cinara Ribeiro

Cinara Ribeiro

Começou cantando rap, no grupo Arauto do Gueto, do Morro das Pedras. Inspirada por Seu Domingos, referência do samba na comunidade, passou a dar canjas em rodas e se apaixonou pelo estilo. Em 2015, lançou o debut “O Samba Mandou me Chamar”, produzido por Thiago Delegado, que traz músicas próprias e de nomes como Fabinho do Terreiro e Ricardo Barrão.

FOTO: Élcio Paraíso/Divulgação
Dé Lucas 

Dé Lucas

Do Aglomerado da Serra, é uma das principais referências entre os sambistas da nova geração de Belo Horizonte. Canta, toca violão e cavaquinho e escreve todos os dias, tendo acumulado mais de 500 composições que abarcam variados subgêneros do samba, do partido-alto ao samba-canção. Onipresente nas rodas da capital, Dé Lucas lança, em novembro, seu primeiro disco de estúdio, “Clarear”.
 

Sambeiro

Bambas do samba autoral de BH se reúnem em novo projeto
 

FOTO: Herlandes Tinoco / Divulgação

Silvestre, Pedrinho, João e Aírton, do Sambeiro 

Silvestre Filho, Pedrinho do Cavaco, João Batera e Aírton Cruz. Quatro cantores, compositores e instrumentistas de Belo Horizonte, com estilos distintos, mas que frequentavam a mesma roda de samba. Porque não juntá-los em um projeto autoral totalmente novo? Foi essa a pergunta que inquietou os produtores Eduardo Curi e Leonardo Apparício, do selo Ronco da Cuíca. O resultado veio este ano, com o disco “Sambeiro – Trabalhadores do Samba”, lançado no mês passado.

O álbum conta com 17 faixas, sendo que cada integrante assina cerca de quatro delas. “É um repertório bem eclético, que traz o samba em suas diversas vertentes. Vai desde o romântico até o samba-rock”, explica Silvestre Filho, lembrando subgêneros como o samba-canção, o partido-alto, o sambalanço e o pagode. “A cidade está cheia de autores desconhecidos e cheios de potencial. Nosso samba caminha bem”, completa o bamba.

De acordo com Eduardo Curi, o disco mostra que “cada um dos quatro tem um estilo bem delineado, mas que não é estanque”. “Tem o João cantando uma música do Pedrinho, o Seu Aírton interpretando uma música do João; o cavaco do Pedrinho é a levada de várias músicas do disco, o violão do seu Aírton é a cola entre as músicas, já o João gravou a maioria das percussões. E por aí vai”, ressalta. “Foi uma verdadeira construção coletiva dos quatro, o que deu uma identidade estética muito definida ao disco”, defende o produtor.

Curi afirma que a principal característica que une os parceiros é o bom humor e a vontade de trabalhar. “Todos enxergaram que é um trabalho de formiguinha, a longo prazo, mas que dá frutos sólidos. Ninguém está buscando sucesso fácil”, afirma o produtor, pontuando que a união entre os pares foi uma forma que os produtores encontraram de driblar as “panelinhas” do samba de BH. “A solução que nós encontramos foi ‘criar’ nossa própria ‘panela’ e trabalhar com quem quer crescer com a gente”, conclui.

O próximo show do Sambeiro acontece no dia 6 de agosto, às 18h30, no Bar Opção, tradicional reduto de samba em BH. Os ingressos custam R$ 12. (LB)
 

Veteranos

Ativa, velha guarda é a principal referência dos novos sambistas
 

FOTO: Lila Vasconcelos / Divulgação

Serginho Beagá lançou “Meu Canto” neste ano

Conversando com os jovens sambistas destacados nesta reportagem, fica claro que as referências para o novo samba mineiro são, em grande parte, os bambas da velha guarda. Nomes como Fabinho do Terreiro e Serginho Beagá (que assinam músicas dos discos de Marina Gomes e Cinara Ribeiro) aparecem reiteradamente, assim como Toninho Geraes, Ricardo Barrão, Mandruvá e Seu Domingos do Cavaco, entre outros.

Para Dudu Nicácio, é importante lembrar o legado da velha guarda, que pavimentou o caminho para que novos talentos surgissem. “A Dona Eliza, por exemplo, é uma das maiores compositores de Minas Gerais. Tem mais de 500 sambas compostos, só coisa maravilhosa”, afirma o músico, que vai gravar uma canção da mineira em seu próximo álbum. “Têm, ainda, nomes como o do Sílvio Luciano, que tem uma obra linda, mas é completamente desconhecido do público”, completa, ressaltando que o reconhecimento da sabedoria dos mais velhos “é algo a se avançar, de forma civilizatória”.

E se engana quem pensa que a velha guarda estacionou; muito pelo contrário. Compositores como Toninho Geraes e Serginho Beagá seguem em franca evidência, com canções gravadas por grandes nomes da música brasileira. Serginho, por exemplo, já teve composições cantadas por gente como Neguinho da Beija Flor, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra, Agepê, Demônios da Garoa e Diogo Nogueira, sem contar as cantoras mineiras Aline Calixto, Cinara Ribeiro e Marina Gomes.

Parceiro de Toninho Geraes, ele acaba de lançar seu sexto disco, “Meu Canto”. “Tenho tido a oportunidade de viajar com o meu trabalho, apresentando o samba em outros países, como no Japão. Lá, lancei meu quinto disco, ‘Vida Nova’, e fiz outras quatro temporadas. Devo voltar agora, com ‘Meu Canto’”, conta o sambista mineiro, que começou sua trajetória na música aos 11 anos.

Para Serginho Beagá, o samba segue ativo por não ser apenas um modismo. “O samba é fonte, é cartão-postal do Brasil, seja onde for. Em BH, hoje temos uma meninada muito boa, que está surpreendendo”, defende. (LB)

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