Cinema

'Mirador', de Bruno Costa, mostra o que o olhar distraído não vê

Filme acompanha vida de aspirante a boxeador, pai solteiro e que tem de sobreviver com bicos

Qua, 04/05/22 - 21h46
Edilson Silva em cena do filme 'Mirador', dirigido por Bruno Costa | Foto: Divulgação

O Brasil às vezes é uma coisa estranha. Todo dia algum canal esportivo de televisão por assinatura exibe o espetáculo deprimente de pobres que se arrebentam para diversão de uma plateia sádica. Não importa o nome do esporte. Não é boxe, que já é violento o bastante. Importa que toda hora aparece nos sites e portais anúncios de brigas, desafios, disputas de campeonato. Importa que nada sabemos sobre essas pessoas, a não ser que elas têm a cara deformada e os dentes quebrados. Que mais existe a saber?

Bem, é isso que "Mirador" mira. Quem são as pessoas com quem nós, classe média, cruzamos tão continuamente quanto ignoramos?

Pode ser um pouco mais. Mesmo nosso cinema não observa, senão muito raramente, os bairros periféricos. Como se vive? Como se sobrevive? O que se come? Onde são as diversões? Etc. Os pobres habitualmente importam mais como marginais ou drogados.

A paisagem de "Mirador" lembra um momento de "O Invasor". Só que no belíssimo filme de Beto Brant a única função da paisagem era abrigar um matador profissional. Em "Mirador" ela é o lugar onde vive Maycon, misto de lavador de pratos e lutador de boxe.

Maycon é também pai. Pois, ao contrário do lugar comum (pai faz o filho e se manda), aqui é a mãe quem desaparece e deixa Malu, a filha de dois anos, aos cuidados do pai. Se seguem então infindáveis duplas jornadas. Talvez triplas –no restaurante, com a filha, nos treinos da academia.

Existem momentos difíceis e outros felizes. Maycon é um homem comum, um personagem neorrealista sem heroísmo. Fazer uma mamadeira, levar Malu ao médico ou a um parquinho faz parte de sua rotina tanto quanto a batalha para emagrecer e entrar no peso que permita a ele lutar.

Em suma, Maycon não é um personagem interessante. Se "Mirador" como um todo, ao contrário, é, deve isso à paisagem, aos caminhões, à porta do mercado, à creche, ao jogo de truco dos amigos. É a sobrevivência cotidiana, com suas humilhações, suas fraquezas. Trata de um homem pobre, enfim.

É possível lembrar o belo "Arábia", no qual é tratada a trajetória de um operário. Mas o filme de Bruno Costa elide até mesmo o aspecto romântico. "Mirador" poupa o espectador dos momentos em que a felicidade se anuncia. Apenas algumas notações –será que a mulher vai voltar? Será que a briga que ocorreu no restaurante terá maiores consequências? Será que por falta de documentação ele perderá a guarda da filha?

Essas pequenas notações, ligeiros suspenses, talvez ajudassem a equilibrar esse mesmo filme, com a mesma capacidade de mostrar uma vida que a gente de classe média até pode olhar, quando passa por um bairro pobre a caminho do litoral, digamos, mas não vê. "Mirador", malgrado seu despojamento, possui essa inestimável virtude do cinema –mostrar o que os nossos olhos distraídos olham, mas não chegam a ver. (Inácio Araújo/Folhapress)


MIRADOR
Quando: estreia nesta quinta (5)
Onde: nos cinemas
Classificação: 14 anos
Elenco: Altamar Cezar, Maria Luiza da Costa e Stephanie Fernandes
Direção: Bruno Costa
Avaliação: muito bom

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