GASTRONOMIA

Questão de tempo: fermentação ganha novos usos para potencializar sabores

Chefs e cozinheiros de BH têm apostado na antiga técnica de preservação de alimentos para elevar as suas receitas

Seg, 01/11/21 - 07h22

Técnica de conservação milenar para garantir acesso a legumes e verduras nos meses de inverno, a fermentação está longe de ser novidade dos países europeus e asiáticos. Não é bem assim no Brasil, em que a oferta de comida fresca é abundante o ano todo. Mas o cenário tem mudado. Chefs e cozinheiros daqui têm apostado na técnica em busca de novos sabores e misturas, como formas de elevar suas receitas. É o caso do chef Cristóvão Laruça. Grande entusiasta da fermentação natural de alimentos, ele começou a aprender a técnica aos poucos, em pequenos experimentos em casa, no ano de 2019. Na época, deixou um vinho português – Moscatel de Setúbal – fermentar até virar um vinagre.

Corta para os dias atuais. Em todos os pratos criados para o novíssimo restaurante Turi, que será inaugurado na próxima semana, pelo menos um ingrediente é feito a partir dessa técnica. São vinagres, kombuchas, manteigas a partir de fermentado de creme de leite e até o inusitado garum, um molho fermentado escuro e denso feito de vísceras de peixe, sal e, claro, tempo. 

O chef ostenta suas versões cultivadas de bactérias nos alimentos, aos montes, em potes e garrafas preparadas na própria cozinha. “A fermentação natural permite sabores mais elegantes e uma acidez mais equilibrada ao prato, bem menos agressiva. No paladar, ela é provocativa. Além disso, fermentar é uma forma de prolongar a vida do alimento e conservá-lo em um modelo de cozinha sustentável, além detorná-lo aliado da digestão”, explica o chef.

Assim como a maioria das pessoas, a chef Carolina Dini, autora do livro digital “Para Começar a Curtir: Fermentação de Vegetais” também sempre consumiu diversos alimentos fermentados sem saber – café, chocolate, pão e vinho, para citar alguns exemplos. Ao estudar processos culinários, em 2015, perdeu o medo de testar a técnica em novos ingredientes. E, assim como muitos chefs entusiastas do preparo, se viu inspirada em Sandor Katz, que é craque no assunto e autor dos best-sellers “Fermentação Selvagem” e “A Arte da Fermentação”. “Estou sempre fazendo testes, especialmente quando me deparo com um ingrediente novo ou de outra localidade. É possível construir camadas de sabores infinitos através dessa técnica culinária”, acredita a chef. Seus recentes experimentos incluem, por exemplo, picles de chuchu com pimenta-rosa, melão com zimbro e relish de cebola-roxa, que ela garante: “Adoro colocar nos sanduíches”. 

“Os fermentados em geral apresentam acidez e texturas diferentes dos alimentos crus, já que a fermentação é uma espécie de cozimento dos alimentos por bactérias e fungos. Esses seres invisíveis são os responsáveis pelos resultados”, explica. 

Ingrediente principal

Experimentos como esses, elaborados por Carol Dini, possuem um ingrediente determinante: a espera. Afinal, as bactérias e os fungos que agem na fermentação têm seu próprio tempo, sem se preocupar com a agenda corrida dos seres humanos. O chef Pedro Cunha, também investe numa receita tradicional: o coreano kimchi, uma conserva condimentada de acelga temperada com pimentas, nabo, cebolinha, nan-plan (molho de peixe), açúcar e sal, fermentada em temperatura ambiente de um a três dias antes de ser envasado. “Depois, deixo na geladeira para que a fermentação se prolongue, de forma mais branda. É o momento de os sabores de acertarem. É preciso ter calma, senão vira um produto industrial, e não é essa a proposta”, exemplifica o chef que comanda a empresa Tempo Fermentados, que possui também produtos como chucrute, vinagre e pimenta sriracha a fim de conquistar mais paladares. 

Na Comidaria Guerra, da chef Marcela Guerra, ao lado dos sócios André Calixto e Vinicius Duarte, até o mel passa pelo clássico processo de fermentação com alho e alecrim para ganhar acidez, complexidade e textura às receitas como a tostada com tapenade de azeitona, servida na pequena cozinha que fica no terceiro andar do Mercado Novo, no centro de BH. “A fermentação tem esse poder de transformação na combinação de produtos, que em sua essência podem ser simples, fazendo com que alimentos de pouca complexidade e muita disponibilidade se transformem em uma grande surpresa no paladar”, explica André. 

O ingrediente, produzido no apiário mineiro Boa Esperança, demora cerca de 30 dias. “O mel fica mais salgado, o alho perde aquela pungência. Pode ser usado em saladas, preparação de molhos, queijos, e em alguns lugares utilizam até como remédio caseiro”, disse. 

No mesmo endereço, abacaxi, maracujá, tangerina e limão e outras frutas, juntamente com flores e ervas fermentadas dentro de gigantes potes, dão origem a drinks naturais – batizados de hard seltzer, bebida leve e ácida da marca Lambe Lambe, disponível na Fermentaria do Mercado. “Extraímos dessa infusão das frutas sazonais com água gaseificada o açúcar, e parte dele é transformado em álcool”, disse Edson Cunha, sócio e produtor da marca.

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