Entrevista

Sem reforma das polícias, não há como eliminar milícias, diz José Padilha

Diretor de 'Tropa de Elite' acredita que temas retratados no longa seguem atuais

Por Agências
Publicado em 28 de março de 2024 | 11:06
 
 
José Padilha, diretor de Tropa de Elite Foto: DIVULGAÇÃO

Corrupção, violência e ligação entre polícias, políticos e milicianos, temas retratados na saga "Tropa de Elite", seguem atuais, diz o diretor do título, José Padilha, ao analisar as novidades na investigação sobre a morte de Marielle Franco.

Aos 56 anos, o cineasta que também comandou o premiado documentário "Ônibus 174" e a série "O Mecanismo", criticada por referências elogiosas à Operação Lava Jato, chegou a ser convidado a integrar uma equipe empenhada em lançar série ficcional sobre a ex-vereadora carioca na Globoplay.

O projeto foi anunciado em 2020. Em nota, a Globo afirmou que saiu do projeto "diante de divergências criativas" e que planeja ampliar sua série documental "Marielle, o documentário", com as novas revelações do caso. 

Em entrevista, Padilha explica seu envolvimento na produção, comenta a criminalidade no Rio de Janeiro e dá sua opinião sobre o legado de Marielle.

São 17 anos desde o lançamento de "Tropa de Elite", que aborda temas como corrupção policial, violência urbana e milícias. Tudo isso volta à tona com a investigação sobre o assassinato da Marielle. O sr. acredita que a obra segue sendo um espelho da sociedade carioca? Acho que o "Ônibus 174", o Tropa 1 e o Tropa 2, tomados como uma obra em três partes, pintam um quadro realista da sociedade carioca. O "Ônibus 174" documenta a tirania com que o Estado trata jovens condenados por crimes pequenos, como furtos. E mostra a tortura que são nossos presídios lotados. Isso explica em parte por que formamos criminosos violentos. O Tropa 1 aborda a formação, também pelo Estado, de policiais corruptos e violentos, que matam e torturam nas favelas. Já o Tropa 2 mostra o momento em que agentes do Estado, policiais, bombeiros, vereadores e deputados estaduais, se articulam para atuar como máfia nas favelas, dominando atividades básicas como o transporte, o acesso a TV a cabo e o gás. Infelizmente, tudo isso continua atual.

Como avalia a maneira como o poder público lidou esses temas desde então? Não lidou. O Brasil é responsável por 20% dos assassinatos no mundo. Há um genocídio em andamento nas favelas do Brasil faz mais de 30 anos, temos uma das polícias mais violentas e ineptas do mundo faz mais de 30 anos e praticamos tortura de Estado nas cadeias faz mais de 30 anos. Nossas lideranças políticas se omitiram e ainda se omitem face ao nosso genocídio recorrente. Todas elas, sem exceção.

Especificamente sobre as milícias, por que o Rio não consegue se livrar delas? Porque o Rio nunca quis reformar as suas polícias. E porque os governos federais nunca fizeram um plano nacional de segurança que forçasse a unificação e a reforma estrutural das polícias no Brasil. Sem uma reforma radical das polícias, não há como eliminar as milícias.

O sr. participa de um projeto sobre a Marielle, apresentado em 2020, que não saiu do papel. O projeto não é meu. Fui convidado a participar dele. Na minha opinião, o projeto foi anunciado prematuramente. Até ontem, não sabíamos quem havia assassinado a Marielle e o Anderson, e por quê. Sobre cronograma: eu não tenho controle formal sobre o projeto e pouco participei dele nos últimos anos. Dito isso, se eu puder ajudar a viabilizar um projeto sério sobre a história da Marielle, o farei. É uma história importante, que precisa ser contada, de forma contundente e pelas pessoas certas.

O sr. enfrentou muita resistência ao ser anunciado como participante desse projeto. As críticas eram escoradas em dois fatores: ser um homem branco e ter dirigido "O Mecanismo", com referências à Lava Jato. O que pensa dessas críticas? Acho ambas as críticas esclarecedoras. Mudaram a minha maneira de pensar.

O sr. já se declarou um admirador de Marielle. Qual foi seu contato com a vereadora? Qual sua análise sobre a figura e, sendo um simpatizante, essa série se torna algo mais pessoal e intimista? Vou começar pela segunda parte da pergunta. Fui convidado a participar da série porque entendo um pouco sobre as milícias e o crime no Rio. A minha parte no projeto sempre foi estruturar e articular a história do Lessa --agora expandida para a história dos mandantes do crime-- com a estrutura geral da série. Conheci a Marielle no mesmo dia que em que ela conheceu o Marcelo Freixo, numa exibição do "Ônibus 174" no Odeon, seguida de debate entre mim e Freixo. A Marielle ficou até o final pra falar conosco.
Depois estive com a Marielle em debates relativos ao "Tropa de Elite", também com o Marcelo. Ela sempre foi crítica em relação ao "Tropa" e sempre gostou muito do "Ônibus". Finalmente, a Marielle me ajudou bastante durante a CPI das Milícias na Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro], quando estava fazendo pesquisa para o "Tropa 2". E depois no próprio filme, na construção do Fraga, personagem inspirado no Marcelo.
São muitos os motivos para admirar a Marielle. A sua perseverança em face as dificuldades de alguém que cresceu na Maré e se formou na PUC (Pontifícia Universidade Católica), a sua coragem de enfrentar o status quo religioso e político, a sua inteligência e habilidade de se expressar de forma clara e direta, a sua atuação junto às comunidades carentes e ONGs, a defesa dos direitos das mulheres e a oposição radical ao racismo no Brasil, e a coragem para fazer o enfrentamento político a pessoa poderosas e perigosas. Tudo isso por trás de um sorriso contagiante.

(BRUNO LUCCA | FOLHAPRESS)