Da sala de aula para o trabalho infantil

Mesmo sem estatísticas consolidadas, aumento de crianças e adolescentes trabalhando é visível

PUBLICADO EM 13/04/21 - 03h00

Por Izabela Ferreira Alves, 
Queila Ariadne, Rafael Rocha e
Tatiana Lagôa

Sem aulas, crianças vão às ruas para ajudar no sustento de casa - Foto: Flávio Tavares/ O TEMPO

Na porta do supermercado, crianças ajudam clientes a carregar compras em troca de algumas moedas. Na porta do shopping, meninos em busca de clientes se acumulam segurando caixas de papelão recheadas de balas e chicletes. Quando o semáforo se avermelha, a mão que jorra água no para-brisa do veículo é de alguém que deveria estar estudando, assim como as meninas que colorem as unhas de mulheres adultas em salões de beleza. Todas as cenas são reais e ocorreram em cidades mineiras. Envolvem jovens em situação de exploração do trabalho infantil, quando deveriam estar no ambiente escolar, algo que aumentou durante a pandemia, segundo relatos de profissionais ouvidos por O Tempo.

Apesar da realidade se impor de forma inequívoca, não há dados no Brasil que conseguiram captar essa certeza testemunhada pela comunidade escolar. Ainda assim, mesmo antes do coronavírus chegar, o problema já se alastrava. Levantamento feito em 2019 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) demonstrou que 1,76 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalham no país. Dessas, 329 mil estão em Minas Gerais. O mapeamento foi realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

"[...] Sem acesso à escola, muitas crianças e adolescentes estão indo trabalhar para ajudar a renda da família”

Luciana Coutinho, da coordenadora da Cordinfância, órgão de combate ao trabalho infantil no MPT

O que os profissionais que atuam na educação percebem é que está demonstrada a relação de causa e efeito entre escolas de portões fechados e aumento nos índices de trabalho infantil. “É um prejuízo muito grande. A escola funcionava como espaço de proteção contra essa violação de direitos, pois os profissionais de educação identificam na escola os estudantes que estavam passando por essa situação”, observa a procuradora Luciana Coutinho.

“Temos visto um aumento expressivo de casos (de trabalho infantil) em razão da pandemia. Antes, o trabalho infantil sempre foi umas das principais causas da evasão e abandono escolar. Hoje, podemos dizer que estamos vivendo o caminho contrário. Sem acesso à escola, muitas crianças e adolescentes estão indo trabalhar para ajudar a renda da família”, completa Luciana, que atua na Coordenadoria do Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Cordinfância), órgão do Ministério Público do Trabalho (MPT).

A precariedade das estatísticas não dá conta de captar o que vem acontecendo em Montes Claros, no Norte de Minas, por exemplo. No ano passado, a cidade de 413 mil habitantes recebeu um fluxo migratório de poucas dezenas de venezuelanos, vários deles em situação de extrema vulnerabilidade.

Com a crise financeira somada à pandemia, filhos desses imigrantes começaram a pedir dinheiro nas ruas do município. Como são estrangeiros, os caminhos municipais de proteção social são distintos dos oferecidos ao restante da população, o que acaba gerando questionamentos pelos nativos. “Notamos que isso acabou sendo usado como motivo para outros moradores deixarem suas crianças iniciarem ou retornarem a situações de trabalho infantil”, explica Jonathan Araújo, conselheiro tutelar há 5 anos.

Se na área urbana a situação é mais visível, a atividade remunerada de crianças em áreas rurais ganha contornos bastante ocultos. Os relatos não têm chegado aos conselhos tutelares ou às secretarias de educação. “Aqui não temos nenhum caso”, respondeu o secretário de educação de Pedralva, Paulo Sérgio Pereira, ao ser questionado sobre mão-de-obra infantil no município.

“A situação está difícil e tenho vários sobrinhos trabalhando na roça”, informou um morador da cidade do Sul do Estado. Conforme levantamento da PNAD, entre as crianças mineiras que trabalham, 29,7% atuam na agricultura e pecuária.

Esse cenário obscuro esconde situações ainda mais graves, conforme aponta o conselheiro tutelar de Montes Claros. “Há casos até de cárcere privado ou trabalho escravo com crianças”, diz. O período de isolamento social provocou redução na equipe do Conselho Tutelar - a reportagem encontrou dificuldades para falar na maioria das cidades -, e as denúncias vindas das áreas rurais minguaram.

“Sabemos que essas crianças são muito atingidas, principalmente por trabalho doméstico e agrícola. Fazemos um trabalho pontual, mas não posso dizer que é algo frequente”, assume Araújo. Entre as dificuldades encontradas, ele avalia que a questão cultural é uma das maiores. “É algo enraizado. Eles entendem que trabalho é edificante, mesmo em crianças e adolescentes. Tem que ser feita uma desconstrução dessa ideologia”, acrescenta.

A falta de aulas presenciais tem empurrado esses jovens para atividades laborais, na maioria das vezes como alternativa de ajuda na renda familiar. “A extrema pobreza está associada ao trabalho infantil, por isso as famílias precisam de proteção social adequada”, informa Luciana. “A pandemia irá agravar ainda mais a desigualdade social em nosso país”, lamenta.

Pandemia empurra crianças e adolescentes para a informalidade

Rosimeire teve que trabalhar desde criança e hoje, no Conselho Tutelar, tenta fazer com que esse cenário não se repita com outros meninos e meninas - Foto: Flávio Tavares/ O TEMPO

Rosimeire Trindade tem 50 anos. Nascida e criada na favela Sumaré, região Noroeste de Belo Horizonte, ela começou a trabalhar aos 11. Atua como conselheira tutelar há duas décadas. “O trabalho infantil deixa marcas profundas na alma. Vi um escritor falando isso e é verdade”, diz. Transitando pelos becos e vielas da comunidade, ela testemunha diariamente esse tipo de violação, especialmente durante a pandemia. “Aumentou a violência doméstica, trabalho infantil e a exploração sexual. Garantir direitos na pandemia ficou muito complicado. O caldo entornou”, avalia a conselheira.

O caso de Igor

foi um dos mais recentes na lista de Rosimeire. O menino de 13 anos sofreu agressões que deixaram rastros na pele – dentadas e chicotadas – no período em que morava com a mãe, portadora de transtornos mentais, em outro bairro.

“Ele estava sendo espancado, passando privações. Chegou aqui super magro, com mordidas, todo machucado”, desabafa a avó, Elaine Aparecida, uma faxineira de 58 anos que também começou a trabalhar aos 11. Foi ela quem recebeu o neto após denúncia feita por vizinhos da filha no Conselho Tutelar.

Elaine viu repetir com o neto a rotina de trabalho infantil - Foto: Flávio Tavares/ O TEMPO

Enquanto era agredido, o garoto também tinha que trabalhar durante a pandemia. “Eu estava vendendo picolé”, assume o jovem. Cuidar do irmão mais novo, de 2 anos, também estava na lista de suas obrigações.

Elaine agora o protege. Igor agora está saudável e longe do trabalho infantil. O menino quer estudar e trabalhar com agropecuária. Gosta de cavalos e chegou a comprar um animal com o dinheiro da venda do picolé, mas Rosimeire já conhece essa história. “Há vários carroceiros mirins. Começam comprando cavalo e a tendência é ir buscar entulho e fazer pequenos carretos”, diz. “Eles acabam sendo explorados por pessoas que ficam na ponta”, completa a conselheira tutelar.

O pai foi assassinado e a mãe acabou internada. Tantos problemas implodiram os vínculos escolares de Igor, que estava no 6º ano. Estamos em abril e até hoje o garoto não teve uma aula sequer em 2021 – ele não está matriculado na escola. Elaine está acompanhando o caso e busca regularizar a situação do menino. “Até hoje fico muito arrependida de ter largado os estudos e começado a trabalhar aos 11 anos”, relembra. “Se fosse agora, minha mãe teria sido presa”, reflete.

Também na capital, uma diarista do bairro Ventosa, na região Oeste, demonstra apreensão diante da situação de seus dois filhos, de 14 e 15 anos. Sem frequentar as aulas virtuais da escola, eles buscam trabalhos informais na vizinhança. “Acho bom, ao menos eles saem da rua, onde ficam todo dia até 5h da manhã”, conta. “Eles dizem que ficam lá conversando. Eu fico preocupada. Tenho medo de inventarem moda ou alguma coisa”, desabafa a diarista, que terá o nome preservado.

Nome fictício

Subnotificação esconde tamanho real do problema

Um adolescente trabalhando nas ruas de Belo Horizonte (MG) - Foto: Flávio Tavares/ O TEMPO

O trabalho infantil tem assolado as cidades brasileiras, mas de um jeito silencioso. Montes Claros, na região Norte de Minas, registrou um aumento de 60% nas denúncias envolvendo evasão escolar em 2020, passando de 270 para 670, mas ainda assim o conselheiro Jonathan Araújo não tem dúvidas de que o número é apenas a ponta do iceberg. “Na verdade é muito mais, porque ainda tem que ser considerada a subnotificação”, diz. Em Jequitinhonha, ao ser questionado sobre trabalho infantil durante a pandemia na região, um professor de matemática confessa: “É o que mais tem aqui”.

O lamento é idêntico ao que leva inquietação ao cotidiano de uma funcionária de uma escola da rede estadual que trabalha na região Norte de Belo Horizonte. Com décadas de experiência em educação, ela relata com tristeza o cotidiano de uma aluna do 2º ano que começou a vender ovos de galinha para conseguir renda extra. “Ela fez isso para conseguir dinheiro para pagar a internet para estudar. A comunidade aqui é muito carente”, diz a servidora.

O mesmo ocorre em Itabira, região Central, onde não é incomum presenciar crianças vendendo balas nos cruzamentos. “Tivemos muitas dificuldades de ter contato direto com as famílias por causa do isolamento. O contato ficou centrado no telefone”, informa Maria Alice Costa, presidente do Conselho Tutelar do município, situado na região Central. “Há casos de mães que saem para vender amendoim e usam as crianças para atrair os clientes”, revela. A cidade recebeu 1.585 denúncias no Conselho Tutelar, em 2020, referentes a violações de direitos de crianças e adolescentes, metade delas relativas a conflitos familiares.

Professora de história em Mato Verde, Norte mineiro, Cláudia Martins se divide entre a indignação e a resiliência quando fica sabendo que seus alunos estão se ocupando de trabalho abusivo, quando deveriam estar estudando. “Muitos aproveitaram o fechamento (das escolas) para procurar emprego, bicos”, reclama.

Segundo ela, o mais comum na região tem sido meninas irem trabalhar como babás ou manicures. Pequenos trabalhos informais de carregamento são as atividades preferidas pelos garotos. “Tem aluno que não faz as atividades da escola porque precisa ficar cuidando do irmão menor, um bebê, enquanto a mãe vai trabalhar em casa de família. Isso é recorrente”, informa. “Eu vou dizer o quê para essa mãe? Onde ela vai deixar o bebê? Estamos de mãos atadas porque não temos como reagir a isso”, finaliza a professora.

Percepção é de presença maior de crianças e adolescentes trabalhando durante a pandemia - Foto: Flávio Tavares/ O TEMPO

Solução passa por benefício social

Um dos motivos que mais levam as famílias a permitirem que suas crianças pratiquem o trabalho infantil, especialmente neste momento de pandemia, é a falta de proteção social adequada, conforme orienta Luciana Coutinho, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT). “A extrema pobreza está associada ao trabalho infantil. Por isso é preciso que os benefícios emergenciais retornem, e com valor de modo a propiciar de fato esse amparo para essas famílias nesse momento”, sublinha.

Nesse emaranhado de adversidades, pensar em estratégias para recuperar esse estudante que abandonou o ambiente escolar para enveredar em trabalhos informais é algo urgente. “É necessário, no pós-pandemia, que a busca ativa dessas crianças”, avalia Luciana, que atua na Coordenadoria do Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Cordinfância), órgão do MPT.

A procuradora também direciona críticas devido à carência de dados a respeito do tema no país. “Com essas estatísticas teremos a exata dimensão dos casos para enfrentar essa mazela social com os devidos instrumentos”, calcula.