REPORTAGEM

Minha bike, minha vida

Mais do que usuários, eles fazem da magrela um estilo de vida e transformam a pedalada em arte, ato político e até em profissão

PUBLICADO EM 08/08/14 - 14h04
Se existe um desejo comum à maioria dos belo-horizontinos hoje, este seria o de extinguir, num passe de mágica, os congestionamentos que, numa crescente, já tomam conta da cidade. Belo Horizonte tem, hoje, pouco mais de 1,62 milhão de veículos – de acordo com dados divulgados pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), o número cresceu 120% desde 2002 – e a lógica que prioriza o transporte individual em detrimento do coletivo continua a serviço do colapso. Enquanto isso, na contramão da burocracia que o carro representa nos grandes centros urbanos, uma velha alternativa tem aflorado como nova possibilidade: é a primavera da vida simples e o motor do movimento é de propulsão humana. 
 
Em consonância com a tendência global de sustentabilidade, inúmeras iniciativas têm surgido na cidade, nos últimos anos, em prol da adoção da bicicleta como meio oficial de transporte. A nova geração de ciclistas eleva o casamento do útil com o agradável aos últimos níveis e aproveita para transformar a pedalada em arte, ato político e até em profissão. O Bike Anjo ensina quem quer aprender a se equilibrar, o BiciCine ensina a consertar a magrela. Outros reformam suas próprias bicicletas, transformam-na em objeto de admiração, fazem carnaval em duas rodas e lideram o diálogo entre o poder público e a sociedade civil. 
 
Pedalo, sim!
 
Desde 2009, a massa de ciclistas, antes invisível e anônima, é Massa Crítica, e num esquema de organização horizontal e colaborativo, sai pela cidade sempre na última sexta-feira de cada mês para buzinar por visibilidade e comemorar o número cada vez maior de carros a menos. 
 
“Tem muito a mão do pessoal ativista da Massa Crítica e do BH em Ciclo nisso. Eles tentam sempre trazer a discussão sobre a bicicleta à tona, trazer a bicicleta pro mundo real e como meio de transporte oficial. Eu diria que essas pessoas fazem parte de uma geração que quer mudança na cidade. Não é exatamente revolucionária, mas desafiadora do histórico de que no Brasil não se pode andar de bicicleta para ir ao trabalho”, comenta a fotógrafa Bárbara Magri, 24, que, por vontade de fazer a sua parte no incentivo da bicicleta, idealizou o projeto Pedalo, que retrata as pessoas e suas bikes – as quais, segundo ela, refletem a personalidade do dono. 
 
“Tem uma galera que pedala porque não tem grana, tem quem pense na saúde. Tem quem faz tudo pela moda e pelo fetiche – tem de tudo e o Pedalo está tentando desvendar essas variedades. Todas que eu fotografei até hoje têm a cara do dono. E, pra mim, o mais fascinante é saber o quanto a bike é democrática e acessível ao rico e ao pobre. Isso faz dela um transporte muito bonito”, exalta Bárbara, que hoje guia uma Ceci retrô, de quadro baixo, equipada com cestinho e garupa, especialmente reformada pelo Catraca Verde, projeto de reforma de bicicletas antigas do jornalista e designer Gil Sotero, 35. 
 
Assim, chique
 
Adepto e entusiasta do Cycle Chic (movimento que defende a pedalada com elegância e está em várias cidades do mundo como Viena e Berlim), Gil é daqueles que pedalam de terno sem medo de ser suado e feliz. “Tem que subverter as rotas, passar onde tem mais árvores e menos morros. A dica é pedalar sem pressa, controlando a respiração, sem afobamento”, diz. Dono de dez bicicletas, Gil reforma bikes urbanas antigas e fabrica alforjes de materiais reciclados. Seu principal foco, no entanto, é desconstruir a ideia de que o carro é o melhor para as cidades. 
 
“As pessoas são diariamente bombardeadas com esse mantra de carro e status. A gente precisa envolver a bicicleta em produções audiovisuais pra que ela seja também um objeto de desejo dos adultos. É um projeto novo, mas a longo prazo vai ser bacana incentivar e reciclar as bikes da família. Hoje, eu uso pra ir à padaria, ao curso de inglês, pra tudo. No trânsito, pode ser até impressão minha, mas, com as antigas, os motoristas são até mais simpáticos”, observa o ciclista, que tem como xodó uma antiga alemã, resgatada de um porão e, por isso, batizada de Anne Frank.
 
Bikeboys
 
Resgatando a figura do “bike courier”, mensageiro comum na paisagem de Londres e Nova York, o Dizzy Express – Entregas Rápidas surgiu em 2013 para chegar mais rápido com livros, sapatos, flores e documentos. “Apaixonados pela bicicleta”, como se definem, nove rapazes conciliam suas tarefas diárias para se revezar na função não só de fazer entregas, mas de se comprometer a causar o menor impacto ambiental possível e tornar o trânsito do dia-a-dia mais leve. Um dos Dizzy, o desenvolvedor de softwares Gustavo Leal, 30, conta que cada um ajuda como pode para atender à demanda, que só cresce. “Acho massa o modo como a bicicleta gera uma subcultura”.
 
Bárbara Magri 
 
“Em Timóteo, onde nasci, todo mundo anda de bicicleta. Mas quando me mudei pra BH, há sete anos, a cultura se perdeu, pois quase ninguém se aventurava. Quando seu uso começou a se popularizar aqui, há uns três anos, eu me identifiquei muito e quis resgatar a sensação de andar de bike na cidade. Aí, conheci um pessoal do Bike Polo e uma outra galera que começou a aparecer com uns modelos estilizados, que eles mesmos montavam. E foi assim que o Pedalo nasceu. A princípio, eu contava uma história da pessoa com a bicicleta e a fotografava em seus lugares favoritos. Percebi que as bicicletas tendem a ter a cara do dono, mas ainda tem muita coisa por vir. O Pedalo já virou postal, vai virar revista com fotos de Barcelona e, quem sabe um dia, vire um livro?”.
Idealizadora do Pedalo

Gil Sotero

“Adoro bicicletas antigas e sou adepto do Cycle Chic: uso roupas normais para pedalar. Já vou pronto pro trabalho. Em determinado momento, a bicicleta despontou como novo mundo para mim e condensou tudo o que fiz em três anos de reportagens ambientais. Passei a usar a bike como meio de transporte e, por necessidade, aprendi a fabricar alforjes (espécie de mala). Sempre fui muito manual, sempre fiz meus próprios brinquedos. Dos meus projetos, tudo ainda é experimental e tem pouca aceitação, aqui ainda não tem essa cultura tão difundida. Mas estou percebendo que é possível fazer coisas localmente como forma de incentivar o uso da bicicleta como meio de transporte na cidade”.
Mentor do projeto Catraca Verde e BH Cycle Chic
 
Gregório Kuwada
 
“Está caindo o mito de que BH é uma cidade ruim pra pedalar. E isso tudo se deve muito à Massa Crítica, ao BH em Ciclo e a uma série de iniciativas como o Velódromo da Raul Soares e o Bike Polo, por exemplo, que ocupam os espaços e trazem as pessoas pra rua. Todo esforço é importante pra tirar carros das ruas. Do jeito que está, é selva. Temos que aprender a dividir o espaço”.
Jogador do Bike Polo BH
 
Fernando Tourinho
 
“Amo a bicicleta porque ela não me deixa cego em relação à cidade. No carro, você se torna ausente do entorno, do barulho. De bicicleta, você está em contato íntimo, é tátil a relação do ciclista com a cidade. Quem reclama dos morros é porque nunca subiu pra descer de novo. O Bloco da Bicicletinha é o encontro de vários amigos, todo dia a gente conquista um novo adepto.
Folião do Bloco da Bicicletinha 
 
 
INICIATIVAS
 
Bike Anjo
Ciclistas experientes ensinam aos que querem aprender a pedalar com segurança. 
facebook.com/bikeAnjoBH
 
Massa Crítica
Nascido em São Francisco, em 1992, grupo tem encontros em mais de 300 cidades.
facebook.com/groups/massaCriticaBH
 
BiciCine
Ateliê de bike que, além de possibilitar o conserto, é um espaço de convívio e troca da cultura lifestyle ciclística e ciclomecânica.
facebook.com/BiciCine
 
BH em Ciclo
Associação dos Ciclistas Urbanos de BH. Promove a comunicação entre ciclista e poder público, e fomenta a conscientização sobre o uso da bicicleta como transporte.
bhemciclo.org
 
Bike BH
 
Já estão em funcionamento quatro estações no centro da cidade e outras 14 – seis na orla da Lagoa da Pampulha e outras oito dentro do perímetro da avenida do Contorno – têm previsão de instalação até o próximo fim de semana, conforme a BHTrans. Até o final do ano, serão 40 pontos e 400 bicicletas, com foco em interligar os modais de transporte no centro. Ao longo dos primeiros dois meses, já foram contabilizadas mais de 5.400 viagens e o número de cadastros no sistema já soma quase 10 mil.
 
 

Bicicleta devolve vida à cidade

No vácuo da bicicleta, vem a discussão sobre a ocupação da cidade e a reapropriação do espaço público pelas pessoas. Se a concepção de rua hoje gira em torno de um lugar de passagem e destinado aos carros, a bicicleta tem impulsionado ações de resgate da cidade como espaço de convivência. 

A estudante de história e ativista do BH em Ciclo Thaís Junqueira, 24, conta que a bicicleta tem sido uma das responsáveis para que a população, aos poucos, veja a cidade de outra forma. “Os espaços públicos perderam seu caráter democrático. As pessoas usam a cidade como passagem, dentro dos seus carros. Elas compram a ilusão de que vão andar mais rápido, mas não. Com a bike sendo valorizada como transporte, as pessoas voltam para rua porque têm esse contato. A relação é diferente”, afirma Thaís, lembrando pesquisas, como a da Universidade de Clemson, nos Estados Unidos, cujos dados afirmam que os países mais felizes são aqueles que priorizam a bicicleta e que as cidades com mais ciclistas têm melhores índices de segurança pública e economia criativa. “As pessoas consomem mais quando estão a pé ou de bike e as cidades se tornam mais humanas à medida que os motoristas ficam mais atentos a quem está nas ruas”. 
 
Uma dessas manifestações, que variam desde um esporte coletivo praticado sobre duas rodas até o carnaval temático e fora de época, é o Pedal de Salto Alto, que acontece no próximo sábado (16). Saindo da praça da Liberdade, às 17h, as mulheres reivindicam seu espaço e provam, pelo segundo ano seguido, que é possível pedalar no dia a dia sem perder a pose. 
Com um clima mais festivo e à fantasia, o Bloco da Bicicletinha tem saído pelas ruas uma vez por mês a festejar e dançar. O folião Fernando Tourinho, que participa do bloco desde o início, exalta a festa em duas rodas e defende sua importância para que a bicicleta tenha visibilidade e reconhecimento.
 
“Eu acho incrível o fato de o Bloco ocupar o baixio de um viaduto na Andradas como base, como pista de dança. Os ciclistas sempre vão fantasiados e as bicicletas também. Tem bicicleta com caixinha de isopor pra manter geladas as bebidas e tem bicicleta puxando carreta de som”, conta. O próximo encontro do grupo, que sempre se organiza pelo Facebook, está marcado para o próximo dia 22, uma sexta-feira, na praça do bairro Floresta.
 
Polo
 
Inspirados também pelos bike couriers que, nas horas vagas, jogavam polo (esporte geralmente associado ao hipismo), os mineiros do Bike Polo BH também têm atuado como embaixadores da bicicleta. “Com a bike, além de chegar mais rápido, a gente chega mais feliz. Temos agora um cenário forte de ocupações do espaço da cidade e está caindo o mito de que BH é uma cidade ruim pra pedalar”, conta o videomaker Gregório Kuwada, 25, ressaltando a nova cultura e as conexões que a bicicleta proporciona. Belo Horizonte sediará o 2º Torneio Brasileiro de Bike Polo, durante a Virada Cultural de Belo Horizonte, no final deste mês. 
 
“São muito legais essas ações diretas que os ciclistas da cidade têm feito para mostrar que a bike existe. Um dia desses, pintaram no chão do viaduto o termo ‘via comum’ porque a rua tem que ser de todos. Algumas placas de ‘compartilhe esta rua’ também vêm no mesmo sentido. É uma forma até artística de chamar a atenção, já que o maior problema é que o ciclista é quase invisível”, comemora Thaís, com fé que, num futuro breve, as palavras escritas no chão e nos adesivos dos táxis (“Respeite o ciclista”) sejam colocadas em prática.
 
Pedal de Salto Alto
No festival Andando de Bem com a Vida. Praça da Liberdade. Sábado (16), às 17h
 
Bloco da Bicicletinha
Edição "Animal"
Praça Comendador Negrão de Lima (Bairro Floresta). Sexta (22), às 19h.
 
Torneio de Bike Polo
Segundo Torneio Brasileiro. Durante a Virada Cultural de BH. Praça da Estação (avenida dos Andradas, 217, centro). Domingo (31), das 10h às 19h
 
De Pedal por Aí
Exposição do fotógrafo Gelton Pinto Coelho. Fnac BH Shopping (Rodovia BR-356, 3.049, Belvedere, 3286-6260). De 1º a 31/8 De seg. a sáb. das 10h às 22h, dom. e feriados das 12h às 20h30. Entrada gratuita.
 
Vá de bike, vá seguro. Bike anjo e sócio do BiciCine, Vinícius Túlio da Silva dá as dicas
 
Saiba o que quer Pense sempre no que vai fazer com a bicicleta e nos trajetos que precisa percorrer. Cada bike serve melhor a um objetivo.
 
Bike tem tamanho “É igual escova de dentes: difícil servir pra outra pessoa”. Fique atento à sua altura em relação ao tamanho do quadro.
 
Barato sai caro Sem investir muito, dá para montar boas bicicletas a preços justos. Evite as baratinhas de supermercado com muitas suspensões e pneus impróprios para o asfalto. Essas bicicletas geralmente pesam mais e obrigam o ciclista a aplicar uma potência desnecessária. 
 
Visite o Bike Anjo Aprenda sobre as regras de trânsito e respeite as normas. Nunca transite na contra-mão ou na calçada. Sinalize com as mãos a direção que irá tomar. Se não houver ciclovia, ocupe uma faixa da pista. Use capacete, luzes indicativas e roupas claras. Respeite o pedestre.